Durante cerca de 20 anos, Francisco Isolino de Siqueira tem suas crônicas publicadas semanalmente no jornal Correio Popular, de Campinas. Escrevendo sobre o quotidiano da cidade e das pessoas que povoam sua vida, o advogado, jornalista e professor analisa e acompanha as condições econômicas, político-sociais e afetivas que definem os relacionamentos de seu tempo. Sempre através de verdadeiro diálogo com seu "leitor e amigo".

Seja destacando as obras desenvolvidas pelas entidades assistenciais da cidade e chamando o leitor à participação eficiente, seja incentivando os jovens à leitura e à inserção na vida política de sua comunidade ou ainda, relatando com humor as histórias de seu primo, "aquele que sofre do fígado", Isolino de Siqueira desenvolve estilo próprio e marcante de registrar, em forma de crônicas, o mundo à sua volta e também aquele dentro de si.

As crônicas publicadas neste blog são amostras de seu estilo literário cativante, original e pessoal, que conquista o leitor, mantendo vivas as suas mensagens, poesia, beleza e valores atemporais.

Boa leitura. Ou melhor, bom diálogo com este corintiano "irmão de quotidiano".

"Se eu pudesse recomeçar eu procuraria fazer meus sonhos ainda mais grandiosos porque essa vida é infinitamente mais bela e esplêndida do que eu pensava, mesmo em sonho". - Francisco Isolino de Siqueira

(trecho extraído da crônica "Colóquio")

sábado, 1 de outubro de 2011

A véspera e o berço

Ele já amanhece de olhos mais abertos. Não quer perder nada, os menores movimentos, as cores do mundo, a perplexidade das forças. Respira mais fundo, pretende que entre, pulmões adentro, com o perfume das gentes e das coisas, a constatação do novo dia. Isto ocorre todo dezembro, como se fosse diferente o tempo dos outros meses. Podem crer que vira quase criança e para não mentir à própria sensibilidade se convence que jamais deixa de ser moleque. Apenas fica um pouco mais assanhado. É a expectativa em tudo igual à da próxima viagem. Ou da grande festa. Dizem que a véspera é sempre melhor. Então dezembro é feito de vésperas. Todos os dias ele abre janelas e portas como se fosse encontrar o céu cor verde-gargalhada, flores vermelho-loucura, gente azul-perdão. É porque a véspera guarda a surpresa do amanhã. Pois em dezembro ele vive convencidamente a surpresa já. Elimina o ontem devagarzinho e suspende por tempo indeterminado a significação do amanhã. Passa a valer o aqui e agora, a intensidade de todos os gestos, aquela força que nos penetra de alguns olhares especiais, desses que saem lá de dentro com o mais apurado controle de qualidade.     

É o seu primeiro dezembro de sexagenário e ele descobre este registro civil quando lhe pedem que se identifique para que receba o crédito social dos cobradores. Todo cadastro perturba. Aquela relação de datas e de coisas que devemos compor para o cheque especial sempre provoca alguma frustração. Porque temos anos demais ou coisas de menos. E nos parece pior quando temos o tempo escorrido e, ao lado, a pobre conquista, os poucos valores que garantem algumas novas estrelas. O crédito é a véspera do gastador. Pois dezembro incita a ser perdulário, dar as costas aos gerentes sutis dos bancos indexados, que acenam com juros e tributos sobre os limites que ele consegue vencer. Dezembro lhe faz ultrapassar todos os limites. Sente se portador de crédito ilimitado. Assina, todos os dias, se lhe pedirem, cheques em branco simplesmente porque é dezembro. É esplêndido viver o crédito do quotidiano. É como festejar na véspera. A gente aproveita duas vezes, principalmente a cara de pânico do credor mais próximo.  

Quando mais uma vez arma o presépio, sempre ali,  no canto da sala, para que o possa ver, a manjedoura, os pastores e pequenos bichos que se esparramam por montes de serragem e pedras de beira de rio - o pequeno berço lembra-lhe a véspera de todos os tempos. E lhe dá ganas de viver a sensação do primeiro aconchego, da espera. Todo berço é a expectativa do novo. Como a um sexagenário se permite a pretensão do berço? Basta viver, aqui e agora e sempre, a sensação do novo. E é tão simples ocupar se de alguém. Mas ocupar se mesmo e isto quer dizer viver a véspera do amor eficiente. Aproveitar o crédito do patrimônio comum do amor repartido. Ou da comunhão universal de bens, regime que se institui desde os primeiros dias do homem.    Não há berços vazios, pensa com os próprios botões. E o sexagenário descobre o berço ocupado por sua própria véspera. É cofre novo cheio de créditos. Ou cheque especial que pode aproveitar além do limite das estrelas.             

Mas ele ainda quer o seu presente. Além do aqui e agora, também o pacote florido. Para viver a véspera, gastar o crédito, particular do novo é preciso o amor adolescente. Da descoberta. O amor adolescente descobre na véspera. Ao abrir o pacote o sexagenário recebe como presente, na véspera festiva, o amor adolescente.

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