Tomo do lápis para fazer o rol de meus amigos. Por onde devo começar? São tantos os momentos e neles a prova de que a vida é permanente encontro. Por isso desisto. Acontece que gosto de muita gente e às mais das vezes pouco me importa saber se gostam naquela exata proporção a qual o cartesiano cháma de equilíbrio. Há amigos, amigos chegados e amigos íntimos. Há amigos, amigos chegados e amigos íntimos. Há os convivas da vida e os convivas da nossa vida. Aqueles que comem o pão e os que ajudam a amassar o trigo. Mas todos são agradáveis. A flor do ipê dura um só dia. Naquele instante, na mesa do barzinho simpático, o bate-papo, o riso solto, a fofoca estimulante revelam no preciso momento o amigo. Não importa o minuto depois. Quem sabe nos vejamos nunca mais. Há tantas auroras ainda a despontar. É gostoso ficar ali na beira do dia à espera da primeira luz, na madrugada infantil de um novo tempo. Há sempre alguém que cosegue transpor o horizonte. E a passos seguros caminhar a nosso lado.
Mas, há os amigos íntimos nos quais a gente se despeja e se despoja. Aquele que nos reserva um pouquinho mais do próprio coração. Nos olha nos olhos. É capaz de não esconder a primeira decepção e prefere cobrar-nos a verdade para garantir aquele gostoso afeto repartido. E porque se reparte se multiplica e assegura quase sempre a razão da própria vida. É aquele que não tem hora para chegar à sua casa e à sua tristeza. E que não pede para sentar à sua mesa. O amor lhe assegura servidão de uso de tudo de melhor que lhe reserva a doação tranqüila, cheia de compromisso, da própria dignidade. O amigo íntimo é capaz de rir quando você chora para quebrar a monotonia do desespero. E que sabe chorar depois para não somar a própria angústia. E que volta cheio de esperança no abraço que reúne os pedaços partidos. Autorizadamente lhe diz não quando deve dizer não. E sabe cobrar o dividendo da confiança sem limites - sociedade de capital aberto e bolsa corajosa, sem fecho.
Peça-lhe e ele se ofende porque já deu. Sua contabilidade não apura lucros. Divide mesmo os prejuizos o que é excelente porque nos mostra permanentemente o saldo de nosso afeto. E permite pagar em dia o tributo do próprio amor, sem multa e demais cominações legais.
Você tem uma amiga íntima? Aí a coisa complica. Soma-se a tudo aquilo que se identifica como o rol dos valores ou o estoque de riquezas da amizade, mais dose imensa de sensibilidade que oferta outro e esplêndido sentido ao próprio convencimento. Balança o coreto. As soluções que nos angustiam e que reclamamos para os problemas que são estranho obstáculo ao simples exercício de viver parecem tão simples àquela alma definitivamente gêmea. A matemática feminina é estranhamente simplificadora, e nos leva a duvidar até mesmo da existência das quatro operações. A amiga íntima não inventa teoria para justificar a perda de nosso lastro, quando nos desequilibramos por aí, no trapézio de algumas e injustificadas peripécias. Ela simplesmente nos acolhe, remansosa, parece repetir o prêmio do cafuné, aquele que recebemos, a cabeça recostada no primeiro colo. Parece óleo santo que se passa em ferida brava para não arruinar.
Por isso é amizade que exige adicional de periculosidade. Para os riscos de incêndio e curto-circuito.
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