Bom dia, me diz ele, com ar sem pressa. Sei que você anda desindexado, nem mais aquele cafezinho amigo, necessário para esquentar a gente neste fundo frio de seu escritório. Dizem que a amizade aquece. Talvez seja por isso que os mendigos andam em duplas. Não estou aqui à toa , diante dessa cara de homem ocupado, nesta manhã de sexta-feira. Pela primeira vez me convenço da importância do tempo que vamos gastar, nós dois, em simplesmente dizermo-nos coisas aparentemente banais. Já há algum tempo me preocupa o tamanho de seu sorriso. Ele anda pela metade. O que se fez daquela cara luminosa, que você empresta pra gente nos dias durante os quais é urgente crer em si mesmo. Vim buscar a outra metade. Ou fazer com que você descubra onde esqueceu a chave-mestra do circuito de suas paixões. Você não pode perder o que há de mais gostoso neste nosso trajeto apressado e que é exatamente uma boa companhia. É a melhor companhia e a melhor companheira. Ou para ser mais claro - a mulher que você enxerga por inteiro, com olhos de canibal por vocação.
Fique viciado nela. O vício é aquele impulso incontrolável que nos obriga a viver à espera. Expectativa do “nosso” instante quando atendemos em plenitude a nossa paixão, decididamente orgânica. É preciso sentir fome, frio, tremores que arrepiem a própria alma. Tudo isto por causa de sua ausência. Ou falta. Não tenha medo de confessar-se dominado por ela. Ou ainda - deixe-se dominar. Entregue-se a essa paixão. Dizem que o verdadeiro alcoólatra é aquele que bebe escondido. Decididamente faça isso. Esconda-a sempre que puder. Sorva-a aos goles. Curtos e lentos. Sinta primeiro o buquê. O perfume da própria casta. Pare o relógio para não ouvir sequer o tic-tac das limitações. Faça-se fluído, entre-lhe pelos poros. Embriaguem-se, e que se tornem doentes incuráveis.
É engano seu. Ela é a mesma, você é que não tem lido, corretamente, a bula desse santo remédio. Bula é isso mesmo. Recomendação. E para entendidos. E eu sempre confiei em sua experiência de laboratório, na composição de poções mágicas, essas que o transformam em Peter Pan, ou naquela fumaçazinha que volta, de vez em quando, para a garrafa do gênio.
Pena que não tenhamos, agora, aqui mesmo, um espelho. Já aumenta um pouco esse sorriso antes mofino. Vamos pensar um pouco mais, e em voz alta. Os músculos exercitam-se. Assim beijos e abraços. Deixar para depois a curtição de uma nuca, o convite luminoso de olhos convencidos é como pagar o empréstimo compulsório. São recursos da felicidade que não voltam nunca mais. Se puder separe seu dia em três partes iguais. Algumas horas para o trabalho, outras para recompor a força necessária ao exercício do amor. Não pense que proponho poemas piegas, recitados à la Verona, sob a sacada, tranças desandando parede abaixo, frágil ascensão. Proponho o amor táctil, que você enxergue nessa mancha roxa o rubro da própria paixão. Que você tenha por aí, quase em todos os lugares, verdadeiro arco-íris.
Por isso estou aqui. É urgente aceitar o sorriso como sinal de sabedoria. São sábios os loucos e os amantes. Riem sempre. Mesmo que não saibam bem porquê. O riso nos obriga a abrir a boca e aumenta a capacidade de oxigenação do cérebro e da vida. A paixão escancara o coração. Evita enfarte, abre artérias à passagem do sangue apressado pela arritmia do amor. Se ela o ama “mesmo” é besteira sua não tomar três refeições ao dia. Esse negócio de regime, nem o militar. A hora é invenção nossa e só serve para não perder o transporte coletivo. É inteligente quem faz a hora, uma hora enorme, da qual ele se lembra só do minuto derradeiro. E com tristeza.
Já me vou. O amor e a alegria são irmãos siameses. Xifópagos.
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