Durante cerca de 20 anos, Francisco Isolino de Siqueira tem suas crônicas publicadas semanalmente no jornal Correio Popular, de Campinas. Escrevendo sobre o quotidiano da cidade e das pessoas que povoam sua vida, o advogado, jornalista e professor analisa e acompanha as condições econômicas, político-sociais e afetivas que definem os relacionamentos de seu tempo. Sempre através de verdadeiro diálogo com seu "leitor e amigo".

Seja destacando as obras desenvolvidas pelas entidades assistenciais da cidade e chamando o leitor à participação eficiente, seja incentivando os jovens à leitura e à inserção na vida política de sua comunidade ou ainda, relatando com humor as histórias de seu primo, "aquele que sofre do fígado", Isolino de Siqueira desenvolve estilo próprio e marcante de registrar, em forma de crônicas, o mundo à sua volta e também aquele dentro de si.

As crônicas publicadas neste blog são amostras de seu estilo literário cativante, original e pessoal, que conquista o leitor, mantendo vivas as suas mensagens, poesia, beleza e valores atemporais.

Boa leitura. Ou melhor, bom diálogo com este corintiano "irmão de quotidiano".

"Se eu pudesse recomeçar eu procuraria fazer meus sonhos ainda mais grandiosos porque essa vida é infinitamente mais bela e esplêndida do que eu pensava, mesmo em sonho". - Francisco Isolino de Siqueira

(trecho extraído da crônica "Colóquio")

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A pequena sombra

Morávamos na esquina, naquela casa grande, em frente ao ginásio do Estado. A rua limitava o jardim público, por onde transitávamos, os vagabundos e os namorados, alguns à espera da campainha que nos chama às aulas. Estamos, nesse tempo, em Amparo, a casa grande fica na Rua Prudente de Morais, esquina com Luis Leite. Éramos todos pequenos, quase quinze. Papai leciona nesse ginásio, aí em frente, onde estudo eu e meu irmão, o Maneco. Mamãe não consegue fazer outra coisa a não ser cuidar dos filhos, que parecem contas de Rosário, um atrás do outro, as Ave-Marias intercaladas pelo Padre-Nosso de alguns e poucos filhos varões. É divertido levantar cedo, fazer ginástica, voltar correndo para tomar café-com-leite, pão e manteiga, pegar os livros, atender à autoridade do inspetor de alunos que berra a plenos pulmões, advertindo-nos do início das aulas.

Lá em casa, conosco, mora tia Lourdes. Eu disse, certa feita, e não sei onde, que a humildade é o espaço do amor. Ela é irmã de mamãe e tem, naquela casa, naquele momento, papel dos mais significativos, quando se dedica, carinhosamente, à ajuda necessária à nossa educação e cuidados. Silenciosa e amorável, tia Lourdes, faz sua vida, ali dentro, ao lado de todos os pequeninos, ela também, como pequena sombra companheira, sinal e marca definida da doação inteligente. E humilde. Jamais a vi ocupar o primeiro lugar nos institutos da vida. E me comove ainda hoje lembrar que mesmo ali, conosco, na mesma casa, é chamada para sentar-se à mesa das refeições.

Voz mansa, demorada, sempre em tom baixo, punia-nos apenas com o olhar e as repreensões que conseguia compor tinham o feitio de pequena estória, em cujo enredo sempre aparece um moleque levado, que não obedece aos pais e que faz exatamente aquilo que acabáramos de tornar mais uma traquinagem. Ocupa, minha tia Lourdes, Maria de Lourdes Toledo Guimarães - naquele e em todos os momentos, o seu lugar, aquele posto que lhe reserva a vida - a retaguarda do próprio amor - o lugar mais difícil, aquele em que somos porque os outros são, em que existimos porque os outros existem. O lugar do verdadeiro e definitivo amor partilhado.

É assim até hoje, por todos os planos em que atua, silenciosa e boa, humilde gostosamente, sem alardes, eficiente e carinhosa, parece apenas ficar triste quando não tem nada mais para dar. Quando sente que o próprio amor não basta porque são tantos, aqui e agora, na família e na vida, a reclamar-lhe, às mais das vezes, o próprio exemplo. Dizem que não tem filhos. Os que dizem isto não a conhecem, porque todos nós, os filhos da Maura, minha mãe e sua irmã - todos somos seus filhos e ainda agora dividimos, alegremente, o nosso amor com esta pequena criatura, suave como pequeno poema, rima de carinho e afeição.

Mas, o que mais me impressiona, naqueles dias de Amparo é prova inequívoca e que marca a personalidade de tia Lourdes, quando lhe peço uma colaboração para o meu jornal manuscrito. Deu-me pequeno poema magnificamente urdido. E quando meu pai, Hildebrando Siqueira, o leu, ele redator de um dos jornais da cidade, quis publicar alguma coisa de sua sensibilidade, surpreso porque desconhecia, até então, aquela alma de artista. Recusa-se e jamais escreve apavorada com a própria descoberta, a descoberta do próprio tamanho.

Porque sombra, refrigério e paz. Baixinha. Pequena não, porque no justo tamanho das criaturas que ama.

A rua

Assim como as casas têm alma, as ruas parecem familiares e cômodas, buliçosas e inquietas, coloridas como rosto infantil ou sérias, encarquilhadas nas ladeiras, abraçadas às árvores, embriagadas de perfume. As ruas têm destino. Começam em algum lugar, terminam na próxima esquina. E, tem nome. Há as ruas largas, como anca de mulher fértil e as estreitas como peito de tísico. Respiram e conversam e de repente dormem. E é gostoso provocá-las no silêncio da madrugada. Despertam nas janelas assustadas e espreguiçam-se e bocejam nas manhãs de tanta gente. Há ruas-avenidas, ruas-becos, as que se promovem e as que envelhecem. Cansam de tanto progresso. Algumas me convidam. Gosto de passar por elas. Outras não me olham com bons olhos. Não as evito, mas ando depressa.

As ruas têm nome. Passo todos os dias pela que guarda, pequenina, o nome de meu pai, Hildebrando Siqueira. Ali no Cambuí. Liga a Antônio Costa Carvalho à Santos Dumont. Curtinha. Poucas casas, quase sempre vazias. Árvores e flores. Gente de vez em quando e carros, estes não a usam. Ela não dá acesso à coisa nenhuma. Começa e acaba em si mesma. Nunca vi rua tão íntima. E por isso mesmo me lembra, a todo o momento, a figura de meu pai. Como ele se sentiria, ali, diante da placa presa à parede ou ao poste, com o seu nome?

Hildebrando Siqueira foi literato, professor, cheio de filhos e livros, vivia naturalmente atribulado pelos encontrões da vida. O que é natural, em todos os tempos, a professores e pais de família numerosa. Muitos filhos e pouco dinheiro. É a fórmula primitiva de inflação. Não era lá muito afeito ao silêncio. Menos ainda à solidão. Os filhos não lhe permitiram nunca tal luxo. E ele mesmo era irrequieto, gostava dos amigos e da vida. Procurava, através das atividades que exercia, a comunicação quotidiana, com alunos na cátedra. Com leitores nos jornais onde trabalhou. Não sei não. Nesta rua era capaz de inventar alguma coisa para fazê-la mais dele.

O que Hildebrando inventaria para que a sua rua sorrisse com aquele jeitão boêmio? Com certeza esticaria bandeirinhas coloridas de árvore em árvore, como varais de alegria, as pequenas peças ao sol, de uma casa à outra. Mandaria abrir as janelas sempre, derrubar os muros altos.

E daria a cada um aquele telefone de brinquedo, para que todos conversassem, de porta a porta, enquanto carros e carinhos, crianças e bicicletas atrapalhariam todos os caminhos, como o tricô macio das mulheres que se sentariam à calcada, nas cadeiras preguiçosas, o próximo filho no ventre. Aliás, todas as mulheres deveriam ser, naquela rua, agora e sempre volumosas e bojudas. Deveriam parecer-se a um navio adernando. Imagem corajosa da fertilidade.

A rua Hildebrando Siqueira, ali no Cambuí, seria conhecida internacionalmente. Seriam comemoradas todas as festas de junho, ruidosamente. Haveria presépios coletivos nos natais e bois e burros de verdade pela rua cheia de serragem e bolas de vidro colorido nas árvores. E brinquedos. Muitos brinquedos, por todos os cantos e todos seriam capazes de perguntar sem susto, a todos os momentos, uns aos outros, como vai esse coração amigo. Essas tais de ponte safena seriam de coração a coração. Atrapalhariam até o trânsito da rua de meu Pai.

Tenho certeza de que mandaria ladrilhar com pedrinhas de brilhante, para que todos os seus amores pudessem passar. E estaria ele, lá, à porta, o sorriso largo naquela boca enorme, transparente como um sonho, com aquele arzão companheiro, sinal permanente de bom tempo, lá dentro, naquele coração de poeta e moleque.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Defeito de fabricação

Mamãe que me desculpe. Mas apresento alguns e curiosos defeitos de fabricação. Sou sentimental, quase piegas. Me acostumo com as pessoas, os caminhos, a paisagem. Como chinelo velho. Gosto de uma camisa a exaustão e já há muitos anos não tenho o chamado terno-de-missa. Uso tudo ao mesmo tempo e quando descubro os sapatos envelheceram juntos, comodamente. Decerto vou ser um defunto fácil. É só virar as gavetas num balaio e pode até mandar junto com o que restar das minhas paixões. Levanto cedo e deito tarde. Detesto ficar de olho fechado. A vida é curta e há tanto o que ver. A madrugada exerce sobre minha alegria estranho fascínio. O seu perfume me embriaga. Quando estou alegre fico quieto. Quando estou triste viro uma matraca. O amor me dá arrepios de frio a trinta e seis graus à sombra e o entusiasmo pelo que faço parece febre terçã, me ataca em surtos intermitentes. Procuro os caminhos mais longos porque alimentam a expectativa e tropeço facilmente em cadeiras e degraus.
Notem que são alguns e curiosos defeitos de fabricação. E acrescento, para a necessária tranqüilidade da artista que me esculpiu, que me alegro com os próprios defeitos. Principalmente um deles - não sei colecionar coisa alguma. Desses objetos que tantos caçam com entusiasmo. Caixas de fósforo, xícaras sem pires. Cadeiras de espaldar alto. Cachimbos e dólares. Os livros, estes eu os guardo. Tenho por eles um carinho à parte e não entendo bem guardá-los como se isto fosse colecionar livros. Entretanto. Não gosto de reler. Mais parece preguiça mental. Livro lido é como bagaço. Guarda-se para aproveitá-lo como fermento, de vez em quando. Choro em casamento de filhos dos outros e não sei contar piada em velório, acho por demais respeitável a serenidade do morto.
Já procurei me consertar de alguns registros defeituosos, como, por exemplo, a facilidade que tenho para esquecer quem não gosta de mim. Ou a dificuldade que sinto em decorar poesias, nome de rua, número de telefone, nome de colunável, data de festa pública e signos do zodíaco. Arrumei alguns processos mnemônicos para não fazer feio em festa solene, diante do homem que chega de gravata borboleta, com cara de dono-da-casa. Mas troco as bolas facilmente e o prior é que não sinto vergonha.
Preciso sentar nos primeiros bancos da igreja e entreter-me o tempo todo lendo o livro de missa senão fico curtindo orelhas e narizes. Sou desatencioso e para estudar me obrigo a ler em voz alta, quando não ando de um lado apara o outro na sala dos livros, esta a qual chamo biblioteca. Preciso amarrar o corpo inteiro, prendê-lo decididamente naquilo que estou fazendo, porque senão minha cabeça rola por infindáveis sonhos, desaparece do próprio corpo, corajosa e escoteira. Não sei onde são guardadas as tampas de panela, as toalhas de banho, a pasta de dente. Quase sempre não me lembro do que comi no almoço. Nunca fiz café e prego torto o botão na camisa.
Entretanto, para compensar tenho alguns registros perfeitos. Perfeitíssimos. Adoro gente. Gosto de visita. Companhia para almoçar e de olhar nos olhos de todo o mundo. Entendo muito melhor as pessoas através do silêncio expressivo e úmido dos próprios olhos. Boiam líquidos quando alegres. Quase secam quando bravos. Escorregam nos cantos quando machucados. Compõem o mais perfeito universo de expectativas. Sou ainda capaz de chegar à casa do amigo e não pedir licença para entrar. Quem sabe sente à mesa sem convite e busque a comida na panela. Tenho coragem de afiançar a pena que sinto de quem não gosta de mim.



segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A mágica

Saltimbanco, nômade, homem de circo, ele aceita todos os apelidos que a mulher lhe põe, menos o de vagabundo. É mágico, trabalha. Em casa, na casa dos outros, no circo. Mas, trabalha. E neste mês de Dezembro, com maiúscula mesmo, tem mais serviço do que durante o ano todo. As festas, comemorações, os movimentos filantrópicos levam-no a clubes, creches, hospitais. E lá pode demonstrar a sua especialidade. E Dezembro é o mês mais gostoso do ano e ele sabe bem porque e sente isto lá dentro, aqui de verdade, em qualquer lugar da alma, quando lhe dá gana de fazer mágica para ele mesmo, e vestir-se a caráter, em sua própria homenagem, diante do espelho. Gosta do que faz e fica pensando doidamente que todos deviam fazer mágica. Mágica de verdade. É bom pensar que a cartola está cheia de bichos e coisas e que os bolsos revelam tesouros que fazem sorrir os incrédulos.

Eis a palavra. Não cremos, por isso fica difícil fazer mágica, puxar da manga do paletó o ovo de galinha, de verdade. Quem não crê não pode ser mágico. Não tem graça. Faz as coisas segundo aquele livrinho que se compra nas lojas. Ele não. Faz mágica mesmo. Gosta do que faz e crê. Aí está o ponto de conflito, a briga entre ele, o mágico, sua mulher, o próprio mundo, que riem seriamente da mágica, dos gestos cabalísticos, da própria cartola. Vocês todos não precisam de sinais, os mais diferentes, que lhes servem de referência para tudo na vida? Pergunta-se, quase angustiado, diante da urgência do beijo, a significação do abraço, o próprio presente com papel colorido. São mágicas. Tiramos lá de dentro, do que chamamos coração, com a marca do carinho, o suspiro que se estica durante o próprio beijo. O abraço assinala a conformação do corpo, quando percorremos os limites do amor necessário, quando lhe sentimos no calor humano a significação mágica da própria vida.

Ai de nós todos se não tirássemos desta cartola imensa, das mangas dos paletós, dos bolsos enormes, os badulaques que a princípio nos fazem rir. Não acreditaríamos na própria existência, nos sentimentos, nos homens, nestes irmãos do quotidiano se não fossem os gestos. Cabalísticos, por que não - este do aperto de mão, o olhar-apelo, o olhar-convite, o cafuné, a eficiência do carinho.

O verdadeiro mágico não precisa das palavras. São inúteis. Ele se comunica pelos gestos, e que importa a coisa que lhe sai na mão. O importantíssimo é crer que os bolsos, as mangas, a cartola estão vazios. E que o gesto cria, faz surgir, nada mais do que de repente, o pombo, o anel, aquele relógio com a corrente e tudo. E que o beijo faz surgir, cria, recria, define e qualifica a própria vida. Importa o gesto e acreditar. Os objetos e coisas que aparecem, podem crer, não existem. Surgem por você, para a sua alegria, a permanente afirmação de seu encanto diante do mundo. Você é maravilhoso, porque é em você que reside a grande e esplêndida mágica, a única e eficiente e efetiva. Só crê quem ama. Basta isto para retirar da cartola a gostosa alegria de viver.

Ele se dá conta que está falando sozinho. Já é madrugada e todos dormem na casa às escuras. Lá no fundo, perto da sala em que se recebem os amigos, uma pequena luz. A do presépio; lhe dá, de repente, aquela vontade de fazer mágica, ali sozinho, diante do presépio, para o menino na manjedoura. Tira a cartola e de lá o pombo assustado, de asas enormes. Das mangas, ovos, bolas de bilhar, bandeiras de todas as cores. Os bolsos revelam carrinhos, pequenas bonecas, mais bandeiras coloridas, apitos e cornetas.

Deposita tudo isto, os gestos e as coisas, ao pé do presépio e crê no sorriso demorado da pequena figura de barro, de braços abertos.

A carta (I)

Acho que não abrirei jamais esta sua carta. Vou deixá-la nesta gaveta - a das recordações - até não sei quando. Dentro dela há de perdurar o mesmo segredo que soubemos representar durante tanto tempo, à semelhança da senha que você devolve e que há de permanecer, também, ali dentro, a fim de que se não desvende mais o sagrado mistério que se compôs entre nós. Esta vai ser uma carta diferente - fechada. O envelope cerrado com perfeição, mesmo porque você o grampeou inúmeras vezes, quase com raiva. De que vale uma carta fechada? Por que não ler tudo aquilo que você quis dizer afinal? De verdade nunca deveríamos ter aberto as correspondências de nossos sentimentos - deviam ter ficado seladas, por medida de segurança. E, evitaríamos o desastre de tanto amor, aquele que desabava sobre nós dois, de repente, violento e consumidor. Mas, por outro lado, por que não abrir cartas, bilhetes, relatórios, resumos, textos que se nos oferecem com abraços, apelos, notícias, advertência, conclusão e apoio? Por que não trocar a correspondência que alimenta os afins - aqueles que se descobrem assustadoramente necessários, uns para com os outros?

Mas, não - esta carta não abrirei jamais. Não quero ficar sabendo em tempo algum o que você quis me dizer. Talvez esteja perdendo abraços, beijos gráficos, resmungos estilizados, revolta dactiloscópica. Não importa. Prefiro reescrever a carta que vou manter fechada. Reescrevê-la todos os dias, pela manhã, quem sabe à luz do sol poente, ou nas madrugadas que se operam mais coloridas nos bares insones. Reescrever às sextas-feiras em cores ou melancolicamente londrinas, estas do outono, mas reescrever sempre, com alegria ou com letras que se mergulham nas lágrimas que teimam em mudar a forma da paisagem, - mas reescrever. E, o que diria por você? Que palavras representariam o seu pensamento, não o que fere a distância que nos alimenta a própria saudade, mas este outro que revelasse, à semelhança das lagartas dos casulos, a perspectiva da primavera nas cores das asas novas. Vale a pena reescrever com tinta verde, quem sabe se projetem nas entrelinhas os brotos da vida nova - a nova vida que surge sempre depois da poda dos velhos galhos, das cinzas das próprias folhas secas.

De verdade tenho medo. Como sempre a mim me parece difícil a aceitação tranqüila da perda e ao mantê-la fechada, a carta, parece que selo o tempo, mantendo-o lá dentro, inalterável, incorruptível, infinito. Ou parado. Fica o retrato do quotidiano como está, sem qualquer alteração, imutável, - as feições, o riso, os gestos, tudo estático como se nada mais do que de repente pudessem recomeçar, gostosamente, com as mesmas cores, a mesma angústia, as dores primitivas da descoberta. Por que abri-la? Parece tão impossível entre nós a vulgaridade do fim - já pensou como seriam descabidas despedidas no céu, entre nuvens, asas brancas, harpas em desfile, lenços de luar nas mãos que se não afligem? Felicíssimo o instante em que não rompeu o envelope e a decisão de mantê-lo grampeado garante-me a coragem de reescrevê-la, à carta, todos os dias, quase em todos os momentos, como estranho refazimento de forças, a realimentação da alegria que se traduz em expectativa, esperança, - quase certeza de permanência. Quem sabe algum dia destes calendários que se desfazem, antes que a carta fechada se transforme em espólio, eu a queime. Então, de verdade, serão cinzas do passado.

Nova Constituição

Senhores, façam silêncio. Vamos começar os trabalhos parlamentares e para tanto carecemos da atenção de todos. Aí estão caderno e lápis fornecidos pelos cofres públicos e durante os trabalhos há tempo para pequena refeição, sadia e balanceada. Como deve ser a alimentação de parlamentares e constituintes. Tudo muito frugal. Neste capítulo trataremos dos estados da alma. O artigo primeiro define tais situações estas que encontramos aqui dentro, sei lá se no coração ou na alma toda. Os estados principais são: enxuto, úmido, rarefeito e sólido. Estar enxuto, não há nenhuma referência à água, mas à alma. Falta-lhe um pouco de loucura. Ela apenas ama. Para que não fique enxuto é preciso quebrar toda a rotina dos sentimentos. Dizer, como em ladainha, eu te amo, no mesmo ritmo do ponteiro de segundos, este pequenino que fica na parede de baixo do relógio. Claro que deve ser assim também com a mulher de verdade, esta que está ao nosso lado há tanto tempo. Ela não é bonita? Então diga isto muitas vezes. Faça escândalo com ela mesma. Aí você deixa de estar enxuto. E fica entre o úmido e o rarefeito.

O estado gasoso, ou rarefeito, é esplêndido. Você não para em recipiente nenhum, - seja o quarto, o escritório, as salas solenes dos tribunais da vida. Você escorre pelo espaço. Atravessa janelas e atinge o horizonte. Todos devemos ser voláteis. Só agimos neste estado sob pressão. É proibido, e deve constar de um dos artigos desta nova Carta, que se não deve pressionar os seres gasosos ou gososos. A eles lhes cabe a variedade das formas, as mesmas que as nuvens exibem, corajosamente. Porque são loucos de amor. Ah! Os sólidos. Esquecíamos de dizer que são os impenetráveis, ordeiros, geralmente quadrados ou esféricos, estes são perfeitos. Tem ene lados. Como as bestas. Dificilmente se fica sabendo se amam. Há segura convicção de que não são amados.

Podemos passar já, para a ordem econômica. Este é dos capítulos mais significativos. Quem sabe se possa mudar o rumo do povo deste País imenso, desde logo. Poucos artigos, definições que sejam as mais precisas. Há também que caracterizar as situações financeiras. São as principais, estas: a do perdulário, do comedido, do economista e finalmente do empresário.

Perdulário é todo aquele que se gasta, sem medidas, aos pés da mulher amada. Esbanja afeto, com intervalos que deve manter com alguma regularidade, a fim de que se não inflacionem os sentimentos. Excesso de doces beijos pode provocar diabete. Que se diga isto aqui, embora caiba melhormente no capítulo dedicado à saúde do espírito e outras partes do território humano. Comedido é o cidadão arrumadinho em material amoroso. Tem hora certa. Marca na folhinha. Comemora alguns aniversários curiosos - como aquele do último beijo. Economista é o beneficiário desta constituição que aplica regras ou admite tendências que sempre dão outro resultado. Na prática do amor ou exagera na demanda ou na oferta. Em outros termos, bagunça o mercado. Sobem e descem as taxas, os preços não têm controle. O valor do afeto fica à mercê da bolsa. Já o empresário só ama segundo o fluxo da caixa. Por isso a mulher amada, nas situações deficitárias, equilibra o balanço com recursos de terceiros.

Senhores, chegamos às disposições transitórias. Sugiro que sejamos breves. Acabam-se papel e lápis. Não há mais recursos na cozinha deste congresso. Vamos acrescentar alguns e poucos artigos que sintetizem a convivência, para a efetiva utilização do amor partilhado. Ou quem sabe caiba como artigo único, esta advertência. Deus, ele mesmo, pode tudo menos forçar o homem a amá-lo. Porque todo grande amor é necessariamente crucificado.

domingo, 25 de setembro de 2011

Mês moleque


Aproxima-se o mês de junho e sinaliza a sua chegada com este princípio de frio que nos leva a curtir cama e vinho em boa companhia. Maio de festas religiosas não me estimula tanto quanto este mês subseqüente, durante o qual há outras festas, também religiosas, mas que permitem um pouco mais de barulho. Às vezes me pergunto por que me agradam esta aparente desordem da alegria e as aglomerações, gente, muita gente, todo mundo junto com pretexto ou mesmo sem motivo algum. Tenho alguns meses prediletos. Fevereiro por causa do Carnaval, junho e suas festas características e dezembro com o movimento esplêndido do gostoso reencontro com o novo. Junho é o mês moleque de traques e busca-pés, que se aquece em fogueiras que esparramam brasa e cinza por todo o quintal. Balões, fogos de artifício, os pátios antigos forrados de bandeirolas coloridas, recortadas em papel de seda pela família inteira, desde papai ao menorzinho dos que adoram a folia que os três simpáticos santos permitem. E as tais iguarias, comidas típicas, apropriadas àquele momento, preparadas à margem da tropelia dos perseguidos pelos pequenos rojões atirados aos seus pés.

Mudou junho ou muda alguma coisa aqui dentro, apesar da insistência do moleque que se alimenta de saudade? O que me falta para armar com a mesma madeira o instante de calor para que estourem os grãos de pipoca? Assusta-me à luz deste fogo, que com certeza é bendito, a descoberta de tantos sinais do tempo. Há cabelos brancos, rugas e o susto da própria imagem. Mas, tudo isto é aqui por fora, não há cãs na alma, o espírito se não enruga, vive no mesmo território do menino de calças curtas, boné na cabeça, na desesperada disposição de esconder os cachos do cabelo revolto. Por que esquecê-lo e em nome de que regras colocar o muito de mim mesmo de castigo, comportado, à beira de tanta fogueira, onde derretem batatas doces e se aquece a pinga do quentão?

Como aborrece a polícia das convenções. O que, entretanto, não me afasta dos meus padroeiros, Santo Antônio, São João e São Pedro. Protetores não do homem que se reveste de solenidade, mas do peralta, que se aproveita do susto do rojão e rouba o primeiro beijo da vizinha assustada. Da filha da vizinha.

Não há mais quintais ou pátios? Acenda o gás do fogão. Faça a sua fogueira e que importa que seja apenas aquela chama pequena e azul. De verdade as fogueiras de junho estão acesas aqui dentro, de todos os que foram e são moleques e que se armam de coragem para ainda correr atrás de tantos balões, estes que se movimentam em céus particulares ou públicos. Não se preocupe. Compre pacotes de pipoca que se vendem por aí, o amendoim do supermercado, pinga da boa e misture este líquido com qualquer coisa com paladar de gengibre. Mas desligue a televisão. Não faça muita fumaça. Assustam-se os vizinhos. Rojões e busca-pés? Há sindico em seu prédio? Parece que se isto acontece as coisas se complicam de tal sorte que me parece mais cômodo apenas acender a fogueira do seu coração, como acompanhamento necessário às letras da música antiga.

Ficar em casa nestas noites de junho, nos dias de festa maior, dos santos padroeiros desta santa folia é pelo menos crime de lesa inteligência. Saiam por ai, há praças e jardins onde alguém, inteligentemente há de acender algum fogo, ou fogueira mesmo ou curti-los ao fogo e fogueira em homenagem à lua e estrelas. É tão simples repetir-se moleque em junho. Se você tem vergonha de ser visto pelos amigos que o conhecem apenas engravatado, tire a gravata. Estas festas reclamam apenas o agasalho da alegria. Porque depois o quentão completa a quantidade das calorias exigidas para o riso fácil. E você já viu por acaso, moleque de cara fechada? Que vergonha você não estar apaixonado em junho.