Morávamos na esquina, naquela casa grande, em frente ao ginásio do Estado. A rua limitava o jardim público, por onde transitávamos, os vagabundos e os namorados, alguns à espera da campainha que nos chama às aulas. Estamos, nesse tempo, em Amparo, a casa grande fica na Rua Prudente de Morais, esquina com Luis Leite. Éramos todos pequenos, quase quinze. Papai leciona nesse ginásio, aí em frente, onde estudo eu e meu irmão, o Maneco. Mamãe não consegue fazer outra coisa a não ser cuidar dos filhos, que parecem contas de Rosário, um atrás do outro, as Ave-Marias intercaladas pelo Padre-Nosso de alguns e poucos filhos varões. É divertido levantar cedo, fazer ginástica, voltar correndo para tomar café-com-leite, pão e manteiga, pegar os livros, atender à autoridade do inspetor de alunos que berra a plenos pulmões, advertindo-nos do início das aulas.
Lá em casa, conosco, mora tia Lourdes. Eu disse, certa feita, e não sei onde, que a humildade é o espaço do amor. Ela é irmã de mamãe e tem, naquela casa, naquele momento, papel dos mais significativos, quando se dedica, carinhosamente, à ajuda necessária à nossa educação e cuidados. Silenciosa e amorável, tia Lourdes, faz sua vida, ali dentro, ao lado de todos os pequeninos, ela também, como pequena sombra companheira, sinal e marca definida da doação inteligente. E humilde. Jamais a vi ocupar o primeiro lugar nos institutos da vida. E me comove ainda hoje lembrar que mesmo ali, conosco, na mesma casa, é chamada para sentar-se à mesa das refeições.
Voz mansa, demorada, sempre em tom baixo, punia-nos apenas com o olhar e as repreensões que conseguia compor tinham o feitio de pequena estória, em cujo enredo sempre aparece um moleque levado, que não obedece aos pais e que faz exatamente aquilo que acabáramos de tornar mais uma traquinagem. Ocupa, minha tia Lourdes, Maria de Lourdes Toledo Guimarães - naquele e em todos os momentos, o seu lugar, aquele posto que lhe reserva a vida - a retaguarda do próprio amor - o lugar mais difícil, aquele em que somos porque os outros são, em que existimos porque os outros existem. O lugar do verdadeiro e definitivo amor partilhado.
É assim até hoje, por todos os planos em que atua, silenciosa e boa, humilde gostosamente, sem alardes, eficiente e carinhosa, parece apenas ficar triste quando não tem nada mais para dar. Quando sente que o próprio amor não basta porque são tantos, aqui e agora, na família e na vida, a reclamar-lhe, às mais das vezes, o próprio exemplo. Dizem que não tem filhos. Os que dizem isto não a conhecem, porque todos nós, os filhos da Maura, minha mãe e sua irmã - todos somos seus filhos e ainda agora dividimos, alegremente, o nosso amor com esta pequena criatura, suave como pequeno poema, rima de carinho e afeição.
Mas, o que mais me impressiona, naqueles dias de Amparo é prova inequívoca e que marca a personalidade de tia Lourdes, quando lhe peço uma colaboração para o meu jornal manuscrito. Deu-me pequeno poema magnificamente urdido. E quando meu pai, Hildebrando Siqueira, o leu, ele redator de um dos jornais da cidade, quis publicar alguma coisa de sua sensibilidade, surpreso porque desconhecia, até então, aquela alma de artista. Recusa-se e jamais escreve apavorada com a própria descoberta, a descoberta do próprio tamanho.
Porque sombra, refrigério e paz. Baixinha. Pequena não, porque no justo tamanho das criaturas que ama.