Durante cerca de 20 anos, Francisco Isolino de Siqueira tem suas crônicas publicadas semanalmente no jornal Correio Popular, de Campinas. Escrevendo sobre o quotidiano da cidade e das pessoas que povoam sua vida, o advogado, jornalista e professor analisa e acompanha as condições econômicas, político-sociais e afetivas que definem os relacionamentos de seu tempo. Sempre através de verdadeiro diálogo com seu "leitor e amigo".

Seja destacando as obras desenvolvidas pelas entidades assistenciais da cidade e chamando o leitor à participação eficiente, seja incentivando os jovens à leitura e à inserção na vida política de sua comunidade ou ainda, relatando com humor as histórias de seu primo, "aquele que sofre do fígado", Isolino de Siqueira desenvolve estilo próprio e marcante de registrar, em forma de crônicas, o mundo à sua volta e também aquele dentro de si.

As crônicas publicadas neste blog são amostras de seu estilo literário cativante, original e pessoal, que conquista o leitor, mantendo vivas as suas mensagens, poesia, beleza e valores atemporais.

Boa leitura. Ou melhor, bom diálogo com este corintiano "irmão de quotidiano".

"Se eu pudesse recomeçar eu procuraria fazer meus sonhos ainda mais grandiosos porque essa vida é infinitamente mais bela e esplêndida do que eu pensava, mesmo em sonho". - Francisco Isolino de Siqueira

(trecho extraído da crônica "Colóquio")

sábado, 1 de outubro de 2011

A história do vovô Hildebrando

Algum dia hei de contar às minhas filhas, depois de montá-las a cavaleiro, uma em cada perna, a história bonita que começa assim:

Era uma vez um menino de cabeça grande e olhos curiosos que vivia dando a todo mundo um pouco de seu coração. Era um menino já crescido que não conseguia convencer-se da importância das calças compridas e da seriedade dos cabelos brancos que lhe pintavam a fronte. Vivia contente e por isso não se importava com a preocupação inútil dos que não entendiam como lhe era fácil esbanjar sem cuidado fortuna herdada e que lhe não voltaria às mãos.

Sentava-se, às tardes, na cadeira de balanço de chiado comprido - carro-de-boi em andadura sonolenta - e rodeava-se de outras crianças contando-lhes histórias e ao cabo dava-lhes, e sempre, mais um pedaço de coração. Eram naqueles momentos felizes, crianças, eles todos, esquecidos da vida, identificados naquele sentimento estranho, gostoso, que os fazia amarem-se perdidamente.

E aquele menino crescido de cabeça grande e olhos curiosos aquecia-os com o mais delicioso dos afetos.

Outras vezes deixava-se ficar, no domingo, ao entardecer, improvisando uma orquestra de assobios, entretendo os pequeninos - habitantes bulhentos de um mundo de felicidade.

E vocês vejam qual era o compasso daquela música diferente - os nós dos dedos batidos habilmente nos braços da cadeira de balanço de chiado comprido. O preço da entrada - um beijo na testa...

O menino de cabeça grande e olhos curiosos tinha uma porção de brinquedos. E vivia com eles a maior parte do tempo - longe dos homens grandes, dos que andam por aí tropeçando intencionalmente nos desejos dos outros...

Eis os brinquedos do menino bom - uma porção de livros e uma rapaziadinha miúda e levada da breca. E era cada vez mais feliz sempre que trazia para o convívio amável das estantes mais um livro ou ganhava outra cabecinha de movimentos vivos e choro pronto a chamá-lo algum dia para perto de si a pedir-lhe sempre, e cada vez mais, um pouco de coração.

Parece que só estava contente dando alguma coisa de si mesmo. Tudo o que possuía tinha vontade de distribuir aos companheiros nada pedindo em troca. Bastava-lhe dar. E estava contente.

Acreditava que todos eram bons, tinham gestos de irmãos e amavam-se uns aos outros, como é de preceito.

O menino grande fazia versos e construía cidades de caixas de sapato vazias com ruas cheias de automóveis de corda. Estudava em livros pesados e sonhava o sonho bom de todos os que possuem, de seu, a consciência tranqüila. Sorria ao pôr-do-sol e cantarolava as madrugadas quase vazias quando se disputavam nas assonâncias os pássaros do jardim fronteiro e o último moleque deitado no berço humilde.

O menino grande de cabeça repleta de maravilhas e bolsos de poeta perdia-se vezes sem conta atrás dos passos incertos do penúltimo, com o livro aberto, interrompido quando lia o trecho bonito à companheira de todos os momentos.

E de tanto dar de seu coração um dia percebeu que nada mais lhe restava.

Foi um dia melancólico, triste de verdade. Ninguém esperava que o menino de cabeça grande e olhos curiosos deixasse a gente assim tão de mansinho. Não quis se despedir de ninguém. Pra que?

Deixava em cada um, um pedaço de seu coração. Dera-lhes tudo. Até os próprios instantes de alegria. Repartira com seus pequenitos o menor de seus sorrisos, o mais pobre quinhão de sua fortuna. Partiu em silêncio, porque as palavras eram inúteis. Demorou, entretanto, o olhar carinhoso sobre os companheirinhos de travessuras e horas despreocupadas - como que a contá-los para o jogo alegre do “esconde-esconde”...

E depois que se foi aconteceu o milagre. Em cada uma das pequeninas feições que rodearam assustadas o seu amor de irmão, descrentes de sua ausência, em cada uma delas permaneceu, indelével, um pouco de seu encantamento, de tal maneira que a gente o encontra todos os dias, numa atitude, numa palavra, num desejo - em cada um dos brinquedos bonitos que ele amou tanto, tão pouco tempo.

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