Durante cerca de 20 anos, Francisco Isolino de Siqueira tem suas crônicas publicadas semanalmente no jornal Correio Popular, de Campinas. Escrevendo sobre o quotidiano da cidade e das pessoas que povoam sua vida, o advogado, jornalista e professor analisa e acompanha as condições econômicas, político-sociais e afetivas que definem os relacionamentos de seu tempo. Sempre através de verdadeiro diálogo com seu "leitor e amigo".

Seja destacando as obras desenvolvidas pelas entidades assistenciais da cidade e chamando o leitor à participação eficiente, seja incentivando os jovens à leitura e à inserção na vida política de sua comunidade ou ainda, relatando com humor as histórias de seu primo, "aquele que sofre do fígado", Isolino de Siqueira desenvolve estilo próprio e marcante de registrar, em forma de crônicas, o mundo à sua volta e também aquele dentro de si.

As crônicas publicadas neste blog são amostras de seu estilo literário cativante, original e pessoal, que conquista o leitor, mantendo vivas as suas mensagens, poesia, beleza e valores atemporais.

Boa leitura. Ou melhor, bom diálogo com este corintiano "irmão de quotidiano".

"Se eu pudesse recomeçar eu procuraria fazer meus sonhos ainda mais grandiosos porque essa vida é infinitamente mais bela e esplêndida do que eu pensava, mesmo em sonho". - Francisco Isolino de Siqueira

(trecho extraído da crônica "Colóquio")

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Leitores e Livros (I)

Desde que me conheço por gente enxergo ao meu redor estantes cheias de livros. Papai, Hildebrando Siqueira, era bibliomaníaco. Isto quer dizer que além de gostar de ler gostava do livro. Eis um dos meus vícios - a leitura. Não sou fanático, mas procuro ocupar alguns momentos de minha vida com a melhor companhia, a de autores e livros que me conduzem para novos mundos, riqueza de idéias e, assim, tentativa de novos procedimentos. Estou a pensar em voz alta, nestas férias de julho, enquanto corrijo as provas de meus alunos da Faculdade de Direito, a respeito da leitura. E, de como é urgente tentar que leiam mais, moços e velhos, a fim de que percebam quem sabe melhormente belezas que a vida reserva aos que abrem os olhos da alma. Lê-se pouco e lê-se mal. Em primeiro lugar vamos conversar a respeito de bibliotecas. Quando a maioria dos lares possuir a sua biblioteca, por mais modesta que seja, mas inteligentemente selecionada, teremos atingido o momento em que o desenvolvimento é consentido. Todos os que participam do processo do crescimento social devem desejá-lo. Isto é, devem ser autores do processo e não atores no processo. E, como enxergar melhor? Podem crer que a leitura ajuda decididamente até a curtir melhor o próprio destino.

Há excelentes bibliotecas em Campinas, desde a Municipal e central que é muito bem organizada, às das Universidades, do Centro de Ciência, Letras e Artes, da Academia Campinense de Letras e outras e muitas mais. Já levamos nossos alunos às bibliotecas? E nossos filhos? Nem todos podemos comprar livros e muito menos todos os livros que gostaríamos de comprar. Por isso é bom freqüentar bibliotecas. O hábito de estar com o livro, de manuseá-lo, quem sabe não baste. Ler e conversar a respeito da leitura, digerí-la e sentir-se alimentado quem sabe seja aquilo que chamamos de cultura. O que resta - o caldo que fica do alimento ingerido e o conhecimento novo, que nos conduz com mais segurança. Não sei o que fazer para que os meus alunos leiam. A leitura obrigatória apenas não leva a bom destino. É preciso que se tenha vontade e que se procure o livro, que se o tenha como alguma coisa além da descoberta de heróis e bandidos, mocinhos e mocinhas, mais ou menos amorosos e disponíveis.

Aprendi a ler. É preciso ler à maneira daquele leitor que pretende tudo do livro. Vou descrever a fórmula de leitura. E a adoto para qualquer gênero, desde o mais indigesto livro de Filosofia àquele romance gostoso e leve que nos entretém na sala de espera do dentista. Rabisco o livro. Primeiro hábito e que nos obriga a ler junto com o autor. Riscar a frase mais significativa. O pensamento que se sobressai deve ficar marcado. O trecho mais bem composto se acentua sob os traços da ponta que deve ser bem fina. Quando possível auxiliar-se do dicionário, mesmo para procurar apenas mais um significado para a palavra conhecida. E, manter junto com o lápis uma ficha de leitura. Aquela ficha que todos conhecem e que serve para registros gerais do pensamento. Anotem o que pensaram durante a leitura. Recomponham a sua conversa com o autor, a análise do tema, a frase que lhes parece mais expressiva. Deixem a ficha dentro do livro que foi lido. Leiam em qualquer momento, posição, lugar, e sempre que possível com interesse. Leiam até o fim, mesmo que o livro lhes seja maçante. É disciplina, embora às mais das vezes, aborrecida, mas que permite a crítica mais honesta. Finalmente parem para ver a banda passar. E, façam como a moça triste da inspiração do poeta. Fiquem alegres, porque há sempre novos acordes na partitura da vida.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Galeria de Arte

Quero sentir-me bem onde trabalho. Aqui passo quase metade do meu dia. Por isso faz falta a companhia de coisas simpáticas - móveis e gente. Cadeiras e mesas podem ser adquiridas com a qualidade reclamada. Gente não. No escritório há gente móvel e os que integram o imobilizado. A primeira classe é dos que passam e a segunda é a dos que convivem. O imobilizado - isto é, a gente permanente enfeita o quotidiano e isso é bom. O nosso atendimento se faz em sala especial e ali criamos verdadeira galeria de arte. São quadros de artistas diversos, originais, de tal sorte que enriquecem os momentos humanos que ali se praticam. Coloco de propósito um dos quadros de tal maneira que fique bem defronte à cadeira em que sento durante as entrevistas e reuniões. É trabalho sensível de Suely Pinotti. Um menino ajoelhado brinca com a bola de gude. As cores definem a criatura em branco, como devem ser pintadas as crianças. O interesse tranqüilo da pequena figura transporta-me repetidas vezes para outros cantos da vida, especialmente nos instantes em que, durante o trabalho, preciso fugir de mim mesmo. Ou da gente móvel, dos que transitam diante de minha angústia. Há outros quadros, dentre eles um Tanaka que movimenta cores com audácia. Mas prefiro o menino - debruço-me também com ele para a melhor jogada.



Aquela sala, a nossa vida, o lar, a rua, a sociedade são galerias de arte. É preciso encontrar o quadro que nos conduza seguramente ao sonho. E há sempre mais de um menino debruçado à escuta dos sons da terra. E se podemos adquirir mesas e cadeiras que enfeitam escritórios, não é nada difícil apreciar a arte das próprias criaturas. São galerias de arte os palcos e as peças - há as figuras tristes, criminosas e amoráveis. São também exposições da vida o cinema e o esporte, o clube recreativo e a igreja. Há santos e bandidos. Vencedores e vencidos. Como aproveitar todos os matizes? Os toques audazes do pincel ou o corte violento do cinzel - os homens bons e os menos bons. Os mais bonitos e os que podem ficar bonitos. Para aproveitar a galeria de arte que é a própria vida eleja o seu quadro predileto. Não se esqueça da moldura. Ela delimita o espaço infinito e garante a segurança do belo criado. Permite que você mesmo defina aquele instante que se compôs no tempo. É o único passaporte para Pasárgada.



Ou então crie. Pinte o seu quadro. O que você espera? Que a inspiração lhe garanta um Fra Angélico? Parecem-lhe pesados os pincéis e nem poderia ser diferente. É difícil fazer aquele azul ou esparramar o verde convincente. Por que você não ama pura e simplesmente se os pincéis lhe não respondem? Já pensou que esplêndida obra de arte está ali a sua disposição, em seus filhos, na mulher que o atende como a eminência parda de todos os destinos, nos seus amigos? Há cores ao infinito na aquarela da convivência. Emoldure-os, a estes momentos humanos. Você compõe a própria moldura. Então pode aproveitar gostosamente a sua galeria de arte, não a galeria que você cria, ousada e repetidamente. Daí sim você pode eleger melhormente o seu quadro - a criatura de sua escolha. E descobrimos com certeza que é urgente trabalhar minuto a minuto o esforço artístico. Que não há pincel mais exigente que o amor convencido e que é preciso refazer sem cansaço as linhas do próprio amor. Então você fica tão entusiasmado que acaba adquirindo a própria obra.

sábado, 22 de outubro de 2011

Namorar, verbo transitivo

Miguel põe a xícara de café ao lado da máquina de escrever ainda silenciosa. As volutas da fumaça passam, lentamente, diante de meus olhos absortos. Estou pensando com os dedos parados sobre as teclas, os olhos perdidos através da janela, o pensamento preso ao calendário, ali na parede. Levanto-me para procurar onde deixo o dicionário do Aurélio, e, fixar o significado do verbo namorar. E o verbete ou explicação que lá está diz que é inspirar amor. Verbo transitivo. As coisas e as paisagens me inspiram amor, esta estranha e esplêndida sensação de estar de bem consigo mesmo num vasto mundo de belezas que se ofertam. E sei que para estar enamorado é preciso sentir bater o coração dentro da cabeça, crescido na caixa do peito, à flor da pele como urticária. As pessoas, já agora sem os riscos epidêmicos das grandes febres. É mescla de admiração respeitosa, como a do espectador diante da Mona Lisa. Do quadro. E mantido à distancia pelo cordão de isolamento protetor.

Creio que todo mundo namora todo mundo. De uma forma ou de outra gostamos de alguém. De sua sensibilidade, inteligência, cultura, da maneira como nos tratam. Alguma coisa em alguém sempre nos inspira amor, e por isso dela ficamos enamorados. Vale a pena exercitar o verbo desde o bom dia que se deseja logo ao abrir os olhos, de manhã. Não custa nada namorar um pouquinho antes de se deixar pendurar na gravata e nos problemas do quotidiano. E depois abrir a janela devagar, para surpreender o dia antes que se assuste com as buzinas e as chaminés que se atiram poluidoramente nas esquinas e nos bairros industriais. E namorar o céu, a folhagem vermelha dos canteiros, as paineiras floridas da Avenida Orozimbo Maia.

Isso de dizer que se namora a própria mulher é verdade. A gente não perde o hábito mesmo depois de tanto tempo e até fica melhor. Porque é namoro sem sobressaltos. Convencido e seguro como via de duas mãos. A gente sabe que oferece e recebe afeto e pode trocar carinho sem os riscos da concorrência. Decerto porque se tem o amor indexado pela certeza, e isto quer dizer que se conhece, de antemão, o rendimento da mais segura aplicação destas finanças da sensibilidade. Não namore administrativamente. Exercite o direito de ser antiburocrático nos gestos e no comportamento. Pregue de vez em quando um susto em você mesmo e rompa todas as convenções que por acaso ainda existam entre você e sua namorada. Mesmo que seja a sua mulher. Ou por isso mesmo. Por que não agredi-la com enorme buquê de rosas vermelhas? Ou aquele presente que você compra em qualquer dia, a qualquer hora, sem nenhum pretexto senão o enorme pretexto de assinalar a pretensão de que se convença ainda agora de que vale a pena. Pra mim namorar é um recomeçar sem hora.

É como se aquele minuto fosse sempre o primeiro, o beijo sempre o primeiro susto e as mãos frias a esplêndida marca da expectativa. Não tenha medo de ter medo. Namore certo de que faz bem para o batimento cardíaco, oxigena o cérebro, derruba o picumã que se dependura na alma quando bobamente solitária. Não faça greve de namoro. É a única atividade que se você parar daí que não recebe aumento nenhum. Toda greve de namoro é ilegal. Com certeza você é despedido e sem indenização.

E namoro não tem férias. Nem descanso semanal remunerado. É contrato oneroso, mas profundamente gratificante. Na minha carteirinha de namorado o registro assinala trinta e cinco anos de efetivo exercício.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Meus prezados filhos

Bom dia! Escrevo-lhes estas Iinhas simples e espero encontrá-los com saúde, assim como aos seus - e às vezes tenho cá as minhas dúvidas se me incluo no rol de suas predileções, entre o pássaro preto, o “Shopping” barulhento e os encantos fortuitos dos netos insones. Espero que se não preocupe demais com as notícias dos jornais, porque quase sempre os nossos companheiros catadores de notícias, assim como eu, colorimos com algum exagero os horizontes do mundo. Mas, não se assustem com a tal de inflação, revoluções que se multiplicam por todos os cantos, subornos e subversões, ou modificações mais ou menos rotineiras nos altos comandos das forças vivas do País. Tudo isto acontece, queiram vocês ou não, neste fabuloso mundo desde que se destacou de uma tal de galáxia - e isto faz tempo pra chuchu - por isso o que lhes posso garantir é que o importante é, realmente, viver o aqui e agora. Vocês devem ter percebido que estou rodeando demais para entrar no assunto principal desta minha carta, que escrevo quando se comemora o meu dia - o dos pais - isto é, quando se pretende que se redescubra, por alguns momentos, a mais velha e a mais incômoda das providências da natureza.

Mas, vamos lá - todo pai, por definição, deve ser um chato e isto se traduz pela fiscalização constante a que se submete a si mesmo, porque lhe disseram que deve ser o exemplo ou a função social da educação e porque garantem que deve transmitir a experiência, e partilhá-la, dia a dia, desde o berço à sementeira. E, mais porque o dito cujo - o pai - deve prover, por injunções as mais numerosas, não só a dispensa dos alimentos para o corpo, mas principalmente, os valores para o comportamento político-social. E, é aqui que a coisa se torna mais complicada - ou se embanana, como dizem os nossos mais puros lingüistas. Entretanto, o que parece faltar, entre nós, o pai e os filhos, é o elo ou tecido conectivo que nos torne suficientemente capazes de tolerância recíproca, cada um a admitir os valores do outro, respeitosamente, mesmo que, depois, para seu governo próprio, não cumpram as prováveis determinações, sequer a orientação que pode ser aceita como superada ou imprópria. Isto quer dizer, em termos mais comuns, a recomendação entra por um ouvido e sai pelo outro.

E, agora, vamos ao fecho das nossas considerações matinais - aquelas que lhes ofereço por tudo o que suportaram de mim, os meus erros de educação, as minhas ausências, o pouco que convivi com vocês, as poucas manhãs no pequeno bosque dos alemães, e a injustificada falta de disposição para o jogo de futebol ou o diálogo quotidiano, mas alegre e reconfortante. Quem sabe eu tenha sido, de verdade, um egoísta - quis demais para vocês e me afastei da convivência inteligente e simples e isto porque vocês tendo tudo o que me parecia o melhor viveriam mais tranqüilos e quem sabe fossem menos importunos, me aborrecessem menos. Dei-lhes o que pude para meu sossego - seria este o meu grande erro? Quem sabe eu devesse ser aborrecido pelos pedidos insistentes, repetidos, do que faltasse para o conforto, o transporte, até mesmo para a formação cultural - quem sabe os aborrecimentos das críticas fossem superados pelo ajustamento amoroso que resultaria das querelas, dos nossos combates quotidianos e a vitória fosse de todos, - porque teríamos menos e seríamos mais... Enfim, eis-nos, tardiamente, a nos repetir - de novo o pai chato, o que fala demais, o que monta a pantomima da realidade e dela não participa inteligentemente. Talvez eu consiga ainda a última vantagem disto tudo - quem sabe tenha economizado as lágrimas de meus filhos a fim de que possam com elas regar o meu túmulo.

sábado, 1 de outubro de 2011

Reflexões quase eficientes

Sento-me à mesa pela manhã. Diante de minha fome adolescente estão o café com leite e um pedaço de pão. Fala-me o estômago. Em voz alta afirmo que não gosto de pão puro. A voz de papai me adverte incisiva. Antes puro que impuro meu filho! Até hoje duvido algum pouco de minhas pretensões. Naquele momento apenas parece que me falta manteiga, mas descubro que o pão fora conquistado com decência para a frugal alimentação dos quinze filhos. Daí para diante, desde então, duvido do conteúdo das palavras. Paro sempre para pensar nestes termos gráficos que devem confirmar nossos sentimentos. Amizade pura, garantem-me alguns que perambulam pela minha paisagem humana, aí, quase próximos à própria alma. E me obrigam a perguntar, com outro tipo de fome, se existe amizade impura. Acredito em amizade colorida, isto sim, aquela que faz explodir arco-íris diante de nossos olhos, ao impulso de emoção telúrica. E alguns querem me convencer que existe amor platônico. Procuro no dicionário e ele me traduz a palavra que contém a idéia de amor que se não prende aos interesses materiais. Casto, ideal, diz Platão. Que me desculpe o filósofo, não creio em amor platônico. Talvez casto, mesmo porque o termo me soa bem, é roliço e brando. Há vinhos castos e embriagam.

Sinto informar-lhes que meu amor é táctil. Percebo o qualificativo quando chego diante da estátua iluminada de sensibilidade e não resisto à vontade orgânica de percorrer-lhe as curvas como os cegos, com as pontas dos dedos. Amo em Braille. Por isso não resisto à pretensão de forrar o pão puro com algum pouco de manteiga. Parece carinhoso tomá-lo nas mãos para o ato de cobri-lo com a geléia caseira. Gosto de abraçar os amigos e as amigas. Sentir-lhes a segurança das costelas que protegem os batimentos cardíacos. Olhar-lhes nos olhos, falar-lhes com o afetivo e efetivo aperto de mão. Lamento não conseguir tocar a paisagem, o céu, aquela fímbria de luzes a que chamam horizonte. Mas acaricio à minha maneira as flores, as árvores, os cães. Os pássaros são muito ariscos. Ainda nos obrigam a sermos platônicos. Por isso se mantemos os pássaros em gaiolas, ambos sofremos. Os que amam os pássaros e os próprios. Porque não se deixam tocar. Ou pegar mesmo, corajosamente.

 E as crianças? Atiram-se quase dentro de nós mesmos. Atropelam nossa alma. Enroscam-se em nossos sentimentos. Amarrotam roupas, eliminam vincos de calças bem passadas. Não entendem porque limpamos o rosto depois do beijo lambuzado de chocolate. Ou cheio de grãos de arroz, caldo de feijão, amor eficiente e farelo de pão. Aquele encantador Rabi, há muitos anos, agradece àquele que lhe lava amorosamente os pés depois da caminhada e os refresca com o bálsamo de alto preço. Agradece com mais calor do que aquela que lhe prepara afanosamente o alimento para o corpo. O carinho contém mais proteínas. Ele mesmo molha os dedos na própria saliva e passa-os nos olhos do cego. Fá-lo enxergar. Porque o cura carinhosamente. E pergunta no meio da multidão aflita quem o toca. Tantos o tocam naquele momento, mas é toque de mãos especialíssimo. Cheio de amor, confiança, a afirmativa pretensão de sentir o ser amado. Ouço falar que quem ama não precisa dizer nada a respeito de seus sentimentos. De pleno acordo, porque não se pode falar mesmo durante o beijo. Noticio-lhe que no formal de partilha resta-me este amor táctil como herança de Papai. Ele adora morder as bochechas rosadas dos filhos pequenos. E dos graúdos também. E ouvi-los gritar por entre risos assustados.

Recomendações

Bom dia, me diz ele, com ar sem pressa. Sei que você anda desindexado, nem mais aquele cafezinho amigo, necessário para esquentar a gente neste fundo frio de seu escritório. Dizem que a amizade aquece. Talvez seja por isso que os mendigos andam em duplas. Não estou aqui à toa , diante dessa cara de homem ocupado, nesta manhã de sexta-feira. Pela primeira vez me convenço da importância do tempo que vamos gastar, nós dois, em simplesmente dizermo-nos coisas aparentemente banais. Já há algum tempo me preocupa o tamanho de seu sorriso. Ele anda pela metade. O que se fez daquela cara luminosa, que você empresta pra gente nos dias durante os quais é urgente crer em si mesmo. Vim buscar a outra metade. Ou fazer com que você descubra onde esqueceu a chave-mestra do circuito de suas paixões. Você não pode perder o que há de mais gostoso neste nosso trajeto apressado e que é exatamente uma boa companhia. É a melhor companhia e a melhor companheira. Ou para ser mais claro - a mulher que você enxerga por inteiro, com olhos de canibal por vocação.

Fique viciado nela. O vício é aquele impulso incontrolável que nos obriga a viver à espera. Expectativa do “nosso” instante quando atendemos em plenitude a nossa paixão, decididamente orgânica. É preciso sentir fome, frio, tremores que arrepiem a própria alma. Tudo isto por causa de sua ausência. Ou falta. Não tenha medo de confessar-se dominado por ela. Ou ainda - deixe-se dominar. Entregue-se a essa paixão. Dizem que o verdadeiro alcoólatra é aquele que bebe escondido. Decididamente faça isso. Esconda-a sempre que puder. Sorva-a aos goles. Curtos e lentos. Sinta primeiro o buquê. O perfume da própria casta. Pare o relógio para não ouvir sequer o tic-tac das limitações. Faça-se fluído, entre-lhe pelos poros. Embriaguem-se, e que se tornem doentes incuráveis.

É engano seu. Ela é a mesma, você é que não tem lido, corretamente, a bula desse santo remédio. Bula é isso mesmo. Recomendação. E para entendidos. E eu sempre confiei em sua experiência de laboratório, na composição de poções mágicas, essas que o transformam em Peter Pan, ou naquela fumaçazinha que volta, de vez em quando, para a garrafa do gênio.

Pena que não tenhamos, agora, aqui mesmo, um espelho. Já aumenta um pouco esse sorriso antes mofino. Vamos pensar um pouco mais, e em voz alta. Os músculos exercitam-se. Assim beijos e abraços. Deixar para depois a curtição de uma nuca, o convite luminoso de olhos convencidos é como pagar o empréstimo compulsório. São recursos da felicidade que não voltam nunca mais. Se puder separe seu dia em três partes iguais. Algumas horas para o trabalho, outras para recompor a força necessária ao exercício do amor. Não pense que proponho poemas piegas, recitados à la Verona, sob a sacada, tranças desandando parede abaixo, frágil ascensão. Proponho o amor táctil, que você enxergue nessa mancha roxa o rubro da própria paixão. Que você tenha por aí, quase em todos os lugares, verdadeiro arco-íris.

Por isso estou aqui. É urgente aceitar o sorriso como sinal de sabedoria. São sábios os loucos e os amantes. Riem sempre. Mesmo que não saibam bem porquê. O riso nos obriga a abrir a boca e aumenta a capacidade de oxigenação do cérebro e da vida. A paixão escancara o coração. Evita enfarte, abre artérias à passagem do sangue apressado pela arritmia do amor. Se ela o ama “mesmo” é besteira sua não tomar três refeições ao dia. Esse negócio de regime, nem o militar. A hora é invenção nossa e só serve para não perder o transporte coletivo. É inteligente quem faz a hora, uma hora enorme, da qual ele se lembra só do minuto derradeiro. E com tristeza.

Já me vou. O amor e a alegria são irmãos siameses. Xifópagos.

Ratificação

Tenho vontade agora de pensar solto. Sem os rumos que a gente estabelece para qualquer conversa mais formal. Às vezes sinto necessidade de sentar-me diante de vocês e dizer-lhes coisas bem minhas aqui de dentro, não sei bem se isto é revelação ou simplesmente redescoberta. Porque muitos de vocês me conhecem melhor que eu mesmo. Já lhes disse em certa ocasião que todos nós somos dois. Temos o eu dividido. Mas, descubro que depois de certa idade, quando somos ou não vitoriosos em nossas pequenas escaramuças interiores, sem querer nos unimos, passamos a ser um só. Agora, quando chego a mais uma etapa, e que importa que seja marcada pelo calendário, convenço-me de que mais do que nunca nos unimos os dois de mim mesmo. Não são datas que nos modificam, sim o tempo, esta repetição momento a momento do que somos, de nossos sentimentos, atos e omissões. Agora somos capazes de ratificar tudo o que fizemos, repetir tudo de novo corajosamente. E o que é melhor, sem as preocupações em relação ao mundo e aos homens.

Descobre-se mais alguma coisa como, por exemplo, que o nosso momento é sempre presente. Nós inventamos o futuro. E temos um trabalhão para arrumar o nosso quotidiano para a composição de alguns sonhos. Passo a desfrutar , agora minuto a minuto, coisas e gente mesmo em intenção. O que nesta altura da vida acho mais gotoso e que me entusiasma à alegria? Vocês já perceberam que adoro conviver, também com as dores do mundo porque tenho certeza que me cabe o direito de secar algumas lágrimas. Tantos me ajudaram a enxergar melhor a luz das estrelas, porque me convenceram a manter abertos os olhos da madrugada. Passo a ser um pouco mais exagerado e quero que essa convivência seja efetiva, e isto quer dizer que gosto de explorar a criatura que amo no bom sentido. E esta exploração chega às raias do exagero. O que pouco me importa.

Sente-se, bem solto, na manhã colorida, diante dos netos que brincam. Fique à espera do primeiro tombo. Apenas carregue o pequenino corpo, mas aos beijos. Abafe-lhe o choro com a história do Pedro Malazarte. E garanto-lhe que a lágrima salgada é culpa da máquina de fazer sal do Pedro, aquela que ele não sabe fazer parar. Dê risadas largas, esparramadas, escandalosas.

Mas o bom mesmo é despertar sem compromissos, deixar que os olhos procurem o próprio rumo na penumbra do quarto ainda fechado. E que sejam rítmicos os corações e os primeiros beijos. E que existam descobertas matinais, sem pressa, as pequeninas surpresas de quem ainda não percorrera todos os atalhos do amor. E depois deixar-se quase fluído, ali mesmo, como se tudo não quisesse mais existir. Sentir-se enorme, maior do que o próprio cansaço, fora de todos os limites. Estranho à própria realidade. E compô-la de novo, à realidade, lentamente, minuto a minuto até que chegue a coragem de levantar-se para o mundo e seus encantos agora mais eficientes.

E que a água matinal escorra morna e perfumada, descuidados ambos do barulho do próprio riso e o batismo necessário nesta liturgia que nos faz comungar a própria alma. E que nos revela, no caminho colorido deste pequenino céu, quantas estrelas existem e que se multiplicam mesmo quando temos gostosamente fechados os próprios olhos.

A primeira refeição já foi tomada. Que outro apetite nos resta senão aquele de provar agora e sempre, o dia que nos reserva o esplêndido exercício de viver. Porque é urgente promover descobertas repetidas, a todos os instantes, como se fossem as primeiras. E ficar surpreso do próprio descuido, que lhe não permitira enxergar como é bela a luz que se filtra por entre o cabelo negro e solto.

Ratificar, assim, oficialmente, a própria condição humana. Deixar-se existir. Sem reservas.