Durante cerca de 20 anos, Francisco Isolino de Siqueira tem suas crônicas publicadas semanalmente no jornal Correio Popular, de Campinas. Escrevendo sobre o quotidiano da cidade e das pessoas que povoam sua vida, o advogado, jornalista e professor analisa e acompanha as condições econômicas, político-sociais e afetivas que definem os relacionamentos de seu tempo. Sempre através de verdadeiro diálogo com seu "leitor e amigo".

Seja destacando as obras desenvolvidas pelas entidades assistenciais da cidade e chamando o leitor à participação eficiente, seja incentivando os jovens à leitura e à inserção na vida política de sua comunidade ou ainda, relatando com humor as histórias de seu primo, "aquele que sofre do fígado", Isolino de Siqueira desenvolve estilo próprio e marcante de registrar, em forma de crônicas, o mundo à sua volta e também aquele dentro de si.

As crônicas publicadas neste blog são amostras de seu estilo literário cativante, original e pessoal, que conquista o leitor, mantendo vivas as suas mensagens, poesia, beleza e valores atemporais.

Boa leitura. Ou melhor, bom diálogo com este corintiano "irmão de quotidiano".

"Se eu pudesse recomeçar eu procuraria fazer meus sonhos ainda mais grandiosos porque essa vida é infinitamente mais bela e esplêndida do que eu pensava, mesmo em sonho". - Francisco Isolino de Siqueira

(trecho extraído da crônica "Colóquio")

sábado, 22 de outubro de 2011

Namorar, verbo transitivo

Miguel põe a xícara de café ao lado da máquina de escrever ainda silenciosa. As volutas da fumaça passam, lentamente, diante de meus olhos absortos. Estou pensando com os dedos parados sobre as teclas, os olhos perdidos através da janela, o pensamento preso ao calendário, ali na parede. Levanto-me para procurar onde deixo o dicionário do Aurélio, e, fixar o significado do verbo namorar. E o verbete ou explicação que lá está diz que é inspirar amor. Verbo transitivo. As coisas e as paisagens me inspiram amor, esta estranha e esplêndida sensação de estar de bem consigo mesmo num vasto mundo de belezas que se ofertam. E sei que para estar enamorado é preciso sentir bater o coração dentro da cabeça, crescido na caixa do peito, à flor da pele como urticária. As pessoas, já agora sem os riscos epidêmicos das grandes febres. É mescla de admiração respeitosa, como a do espectador diante da Mona Lisa. Do quadro. E mantido à distancia pelo cordão de isolamento protetor.

Creio que todo mundo namora todo mundo. De uma forma ou de outra gostamos de alguém. De sua sensibilidade, inteligência, cultura, da maneira como nos tratam. Alguma coisa em alguém sempre nos inspira amor, e por isso dela ficamos enamorados. Vale a pena exercitar o verbo desde o bom dia que se deseja logo ao abrir os olhos, de manhã. Não custa nada namorar um pouquinho antes de se deixar pendurar na gravata e nos problemas do quotidiano. E depois abrir a janela devagar, para surpreender o dia antes que se assuste com as buzinas e as chaminés que se atiram poluidoramente nas esquinas e nos bairros industriais. E namorar o céu, a folhagem vermelha dos canteiros, as paineiras floridas da Avenida Orozimbo Maia.

Isso de dizer que se namora a própria mulher é verdade. A gente não perde o hábito mesmo depois de tanto tempo e até fica melhor. Porque é namoro sem sobressaltos. Convencido e seguro como via de duas mãos. A gente sabe que oferece e recebe afeto e pode trocar carinho sem os riscos da concorrência. Decerto porque se tem o amor indexado pela certeza, e isto quer dizer que se conhece, de antemão, o rendimento da mais segura aplicação destas finanças da sensibilidade. Não namore administrativamente. Exercite o direito de ser antiburocrático nos gestos e no comportamento. Pregue de vez em quando um susto em você mesmo e rompa todas as convenções que por acaso ainda existam entre você e sua namorada. Mesmo que seja a sua mulher. Ou por isso mesmo. Por que não agredi-la com enorme buquê de rosas vermelhas? Ou aquele presente que você compra em qualquer dia, a qualquer hora, sem nenhum pretexto senão o enorme pretexto de assinalar a pretensão de que se convença ainda agora de que vale a pena. Pra mim namorar é um recomeçar sem hora.

É como se aquele minuto fosse sempre o primeiro, o beijo sempre o primeiro susto e as mãos frias a esplêndida marca da expectativa. Não tenha medo de ter medo. Namore certo de que faz bem para o batimento cardíaco, oxigena o cérebro, derruba o picumã que se dependura na alma quando bobamente solitária. Não faça greve de namoro. É a única atividade que se você parar daí que não recebe aumento nenhum. Toda greve de namoro é ilegal. Com certeza você é despedido e sem indenização.

E namoro não tem férias. Nem descanso semanal remunerado. É contrato oneroso, mas profundamente gratificante. Na minha carteirinha de namorado o registro assinala trinta e cinco anos de efetivo exercício.

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