Durante cerca de 20 anos, Francisco Isolino de Siqueira tem suas crônicas publicadas semanalmente no jornal Correio Popular, de Campinas. Escrevendo sobre o quotidiano da cidade e das pessoas que povoam sua vida, o advogado, jornalista e professor analisa e acompanha as condições econômicas, político-sociais e afetivas que definem os relacionamentos de seu tempo. Sempre através de verdadeiro diálogo com seu "leitor e amigo".

Seja destacando as obras desenvolvidas pelas entidades assistenciais da cidade e chamando o leitor à participação eficiente, seja incentivando os jovens à leitura e à inserção na vida política de sua comunidade ou ainda, relatando com humor as histórias de seu primo, "aquele que sofre do fígado", Isolino de Siqueira desenvolve estilo próprio e marcante de registrar, em forma de crônicas, o mundo à sua volta e também aquele dentro de si.

As crônicas publicadas neste blog são amostras de seu estilo literário cativante, original e pessoal, que conquista o leitor, mantendo vivas as suas mensagens, poesia, beleza e valores atemporais.

Boa leitura. Ou melhor, bom diálogo com este corintiano "irmão de quotidiano".

"Se eu pudesse recomeçar eu procuraria fazer meus sonhos ainda mais grandiosos porque essa vida é infinitamente mais bela e esplêndida do que eu pensava, mesmo em sonho". - Francisco Isolino de Siqueira

(trecho extraído da crônica "Colóquio")

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Leitores e Livros (I)

Desde que me conheço por gente enxergo ao meu redor estantes cheias de livros. Papai, Hildebrando Siqueira, era bibliomaníaco. Isto quer dizer que além de gostar de ler gostava do livro. Eis um dos meus vícios - a leitura. Não sou fanático, mas procuro ocupar alguns momentos de minha vida com a melhor companhia, a de autores e livros que me conduzem para novos mundos, riqueza de idéias e, assim, tentativa de novos procedimentos. Estou a pensar em voz alta, nestas férias de julho, enquanto corrijo as provas de meus alunos da Faculdade de Direito, a respeito da leitura. E, de como é urgente tentar que leiam mais, moços e velhos, a fim de que percebam quem sabe melhormente belezas que a vida reserva aos que abrem os olhos da alma. Lê-se pouco e lê-se mal. Em primeiro lugar vamos conversar a respeito de bibliotecas. Quando a maioria dos lares possuir a sua biblioteca, por mais modesta que seja, mas inteligentemente selecionada, teremos atingido o momento em que o desenvolvimento é consentido. Todos os que participam do processo do crescimento social devem desejá-lo. Isto é, devem ser autores do processo e não atores no processo. E, como enxergar melhor? Podem crer que a leitura ajuda decididamente até a curtir melhor o próprio destino.

Há excelentes bibliotecas em Campinas, desde a Municipal e central que é muito bem organizada, às das Universidades, do Centro de Ciência, Letras e Artes, da Academia Campinense de Letras e outras e muitas mais. Já levamos nossos alunos às bibliotecas? E nossos filhos? Nem todos podemos comprar livros e muito menos todos os livros que gostaríamos de comprar. Por isso é bom freqüentar bibliotecas. O hábito de estar com o livro, de manuseá-lo, quem sabe não baste. Ler e conversar a respeito da leitura, digerí-la e sentir-se alimentado quem sabe seja aquilo que chamamos de cultura. O que resta - o caldo que fica do alimento ingerido e o conhecimento novo, que nos conduz com mais segurança. Não sei o que fazer para que os meus alunos leiam. A leitura obrigatória apenas não leva a bom destino. É preciso que se tenha vontade e que se procure o livro, que se o tenha como alguma coisa além da descoberta de heróis e bandidos, mocinhos e mocinhas, mais ou menos amorosos e disponíveis.

Aprendi a ler. É preciso ler à maneira daquele leitor que pretende tudo do livro. Vou descrever a fórmula de leitura. E a adoto para qualquer gênero, desde o mais indigesto livro de Filosofia àquele romance gostoso e leve que nos entretém na sala de espera do dentista. Rabisco o livro. Primeiro hábito e que nos obriga a ler junto com o autor. Riscar a frase mais significativa. O pensamento que se sobressai deve ficar marcado. O trecho mais bem composto se acentua sob os traços da ponta que deve ser bem fina. Quando possível auxiliar-se do dicionário, mesmo para procurar apenas mais um significado para a palavra conhecida. E, manter junto com o lápis uma ficha de leitura. Aquela ficha que todos conhecem e que serve para registros gerais do pensamento. Anotem o que pensaram durante a leitura. Recomponham a sua conversa com o autor, a análise do tema, a frase que lhes parece mais expressiva. Deixem a ficha dentro do livro que foi lido. Leiam em qualquer momento, posição, lugar, e sempre que possível com interesse. Leiam até o fim, mesmo que o livro lhes seja maçante. É disciplina, embora às mais das vezes, aborrecida, mas que permite a crítica mais honesta. Finalmente parem para ver a banda passar. E, façam como a moça triste da inspiração do poeta. Fiquem alegres, porque há sempre novos acordes na partitura da vida.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Galeria de Arte

Quero sentir-me bem onde trabalho. Aqui passo quase metade do meu dia. Por isso faz falta a companhia de coisas simpáticas - móveis e gente. Cadeiras e mesas podem ser adquiridas com a qualidade reclamada. Gente não. No escritório há gente móvel e os que integram o imobilizado. A primeira classe é dos que passam e a segunda é a dos que convivem. O imobilizado - isto é, a gente permanente enfeita o quotidiano e isso é bom. O nosso atendimento se faz em sala especial e ali criamos verdadeira galeria de arte. São quadros de artistas diversos, originais, de tal sorte que enriquecem os momentos humanos que ali se praticam. Coloco de propósito um dos quadros de tal maneira que fique bem defronte à cadeira em que sento durante as entrevistas e reuniões. É trabalho sensível de Suely Pinotti. Um menino ajoelhado brinca com a bola de gude. As cores definem a criatura em branco, como devem ser pintadas as crianças. O interesse tranqüilo da pequena figura transporta-me repetidas vezes para outros cantos da vida, especialmente nos instantes em que, durante o trabalho, preciso fugir de mim mesmo. Ou da gente móvel, dos que transitam diante de minha angústia. Há outros quadros, dentre eles um Tanaka que movimenta cores com audácia. Mas prefiro o menino - debruço-me também com ele para a melhor jogada.



Aquela sala, a nossa vida, o lar, a rua, a sociedade são galerias de arte. É preciso encontrar o quadro que nos conduza seguramente ao sonho. E há sempre mais de um menino debruçado à escuta dos sons da terra. E se podemos adquirir mesas e cadeiras que enfeitam escritórios, não é nada difícil apreciar a arte das próprias criaturas. São galerias de arte os palcos e as peças - há as figuras tristes, criminosas e amoráveis. São também exposições da vida o cinema e o esporte, o clube recreativo e a igreja. Há santos e bandidos. Vencedores e vencidos. Como aproveitar todos os matizes? Os toques audazes do pincel ou o corte violento do cinzel - os homens bons e os menos bons. Os mais bonitos e os que podem ficar bonitos. Para aproveitar a galeria de arte que é a própria vida eleja o seu quadro predileto. Não se esqueça da moldura. Ela delimita o espaço infinito e garante a segurança do belo criado. Permite que você mesmo defina aquele instante que se compôs no tempo. É o único passaporte para Pasárgada.



Ou então crie. Pinte o seu quadro. O que você espera? Que a inspiração lhe garanta um Fra Angélico? Parecem-lhe pesados os pincéis e nem poderia ser diferente. É difícil fazer aquele azul ou esparramar o verde convincente. Por que você não ama pura e simplesmente se os pincéis lhe não respondem? Já pensou que esplêndida obra de arte está ali a sua disposição, em seus filhos, na mulher que o atende como a eminência parda de todos os destinos, nos seus amigos? Há cores ao infinito na aquarela da convivência. Emoldure-os, a estes momentos humanos. Você compõe a própria moldura. Então pode aproveitar gostosamente a sua galeria de arte, não a galeria que você cria, ousada e repetidamente. Daí sim você pode eleger melhormente o seu quadro - a criatura de sua escolha. E descobrimos com certeza que é urgente trabalhar minuto a minuto o esforço artístico. Que não há pincel mais exigente que o amor convencido e que é preciso refazer sem cansaço as linhas do próprio amor. Então você fica tão entusiasmado que acaba adquirindo a própria obra.

sábado, 22 de outubro de 2011

Namorar, verbo transitivo

Miguel põe a xícara de café ao lado da máquina de escrever ainda silenciosa. As volutas da fumaça passam, lentamente, diante de meus olhos absortos. Estou pensando com os dedos parados sobre as teclas, os olhos perdidos através da janela, o pensamento preso ao calendário, ali na parede. Levanto-me para procurar onde deixo o dicionário do Aurélio, e, fixar o significado do verbo namorar. E o verbete ou explicação que lá está diz que é inspirar amor. Verbo transitivo. As coisas e as paisagens me inspiram amor, esta estranha e esplêndida sensação de estar de bem consigo mesmo num vasto mundo de belezas que se ofertam. E sei que para estar enamorado é preciso sentir bater o coração dentro da cabeça, crescido na caixa do peito, à flor da pele como urticária. As pessoas, já agora sem os riscos epidêmicos das grandes febres. É mescla de admiração respeitosa, como a do espectador diante da Mona Lisa. Do quadro. E mantido à distancia pelo cordão de isolamento protetor.

Creio que todo mundo namora todo mundo. De uma forma ou de outra gostamos de alguém. De sua sensibilidade, inteligência, cultura, da maneira como nos tratam. Alguma coisa em alguém sempre nos inspira amor, e por isso dela ficamos enamorados. Vale a pena exercitar o verbo desde o bom dia que se deseja logo ao abrir os olhos, de manhã. Não custa nada namorar um pouquinho antes de se deixar pendurar na gravata e nos problemas do quotidiano. E depois abrir a janela devagar, para surpreender o dia antes que se assuste com as buzinas e as chaminés que se atiram poluidoramente nas esquinas e nos bairros industriais. E namorar o céu, a folhagem vermelha dos canteiros, as paineiras floridas da Avenida Orozimbo Maia.

Isso de dizer que se namora a própria mulher é verdade. A gente não perde o hábito mesmo depois de tanto tempo e até fica melhor. Porque é namoro sem sobressaltos. Convencido e seguro como via de duas mãos. A gente sabe que oferece e recebe afeto e pode trocar carinho sem os riscos da concorrência. Decerto porque se tem o amor indexado pela certeza, e isto quer dizer que se conhece, de antemão, o rendimento da mais segura aplicação destas finanças da sensibilidade. Não namore administrativamente. Exercite o direito de ser antiburocrático nos gestos e no comportamento. Pregue de vez em quando um susto em você mesmo e rompa todas as convenções que por acaso ainda existam entre você e sua namorada. Mesmo que seja a sua mulher. Ou por isso mesmo. Por que não agredi-la com enorme buquê de rosas vermelhas? Ou aquele presente que você compra em qualquer dia, a qualquer hora, sem nenhum pretexto senão o enorme pretexto de assinalar a pretensão de que se convença ainda agora de que vale a pena. Pra mim namorar é um recomeçar sem hora.

É como se aquele minuto fosse sempre o primeiro, o beijo sempre o primeiro susto e as mãos frias a esplêndida marca da expectativa. Não tenha medo de ter medo. Namore certo de que faz bem para o batimento cardíaco, oxigena o cérebro, derruba o picumã que se dependura na alma quando bobamente solitária. Não faça greve de namoro. É a única atividade que se você parar daí que não recebe aumento nenhum. Toda greve de namoro é ilegal. Com certeza você é despedido e sem indenização.

E namoro não tem férias. Nem descanso semanal remunerado. É contrato oneroso, mas profundamente gratificante. Na minha carteirinha de namorado o registro assinala trinta e cinco anos de efetivo exercício.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Meus prezados filhos

Bom dia! Escrevo-lhes estas Iinhas simples e espero encontrá-los com saúde, assim como aos seus - e às vezes tenho cá as minhas dúvidas se me incluo no rol de suas predileções, entre o pássaro preto, o “Shopping” barulhento e os encantos fortuitos dos netos insones. Espero que se não preocupe demais com as notícias dos jornais, porque quase sempre os nossos companheiros catadores de notícias, assim como eu, colorimos com algum exagero os horizontes do mundo. Mas, não se assustem com a tal de inflação, revoluções que se multiplicam por todos os cantos, subornos e subversões, ou modificações mais ou menos rotineiras nos altos comandos das forças vivas do País. Tudo isto acontece, queiram vocês ou não, neste fabuloso mundo desde que se destacou de uma tal de galáxia - e isto faz tempo pra chuchu - por isso o que lhes posso garantir é que o importante é, realmente, viver o aqui e agora. Vocês devem ter percebido que estou rodeando demais para entrar no assunto principal desta minha carta, que escrevo quando se comemora o meu dia - o dos pais - isto é, quando se pretende que se redescubra, por alguns momentos, a mais velha e a mais incômoda das providências da natureza.

Mas, vamos lá - todo pai, por definição, deve ser um chato e isto se traduz pela fiscalização constante a que se submete a si mesmo, porque lhe disseram que deve ser o exemplo ou a função social da educação e porque garantem que deve transmitir a experiência, e partilhá-la, dia a dia, desde o berço à sementeira. E, mais porque o dito cujo - o pai - deve prover, por injunções as mais numerosas, não só a dispensa dos alimentos para o corpo, mas principalmente, os valores para o comportamento político-social. E, é aqui que a coisa se torna mais complicada - ou se embanana, como dizem os nossos mais puros lingüistas. Entretanto, o que parece faltar, entre nós, o pai e os filhos, é o elo ou tecido conectivo que nos torne suficientemente capazes de tolerância recíproca, cada um a admitir os valores do outro, respeitosamente, mesmo que, depois, para seu governo próprio, não cumpram as prováveis determinações, sequer a orientação que pode ser aceita como superada ou imprópria. Isto quer dizer, em termos mais comuns, a recomendação entra por um ouvido e sai pelo outro.

E, agora, vamos ao fecho das nossas considerações matinais - aquelas que lhes ofereço por tudo o que suportaram de mim, os meus erros de educação, as minhas ausências, o pouco que convivi com vocês, as poucas manhãs no pequeno bosque dos alemães, e a injustificada falta de disposição para o jogo de futebol ou o diálogo quotidiano, mas alegre e reconfortante. Quem sabe eu tenha sido, de verdade, um egoísta - quis demais para vocês e me afastei da convivência inteligente e simples e isto porque vocês tendo tudo o que me parecia o melhor viveriam mais tranqüilos e quem sabe fossem menos importunos, me aborrecessem menos. Dei-lhes o que pude para meu sossego - seria este o meu grande erro? Quem sabe eu devesse ser aborrecido pelos pedidos insistentes, repetidos, do que faltasse para o conforto, o transporte, até mesmo para a formação cultural - quem sabe os aborrecimentos das críticas fossem superados pelo ajustamento amoroso que resultaria das querelas, dos nossos combates quotidianos e a vitória fosse de todos, - porque teríamos menos e seríamos mais... Enfim, eis-nos, tardiamente, a nos repetir - de novo o pai chato, o que fala demais, o que monta a pantomima da realidade e dela não participa inteligentemente. Talvez eu consiga ainda a última vantagem disto tudo - quem sabe tenha economizado as lágrimas de meus filhos a fim de que possam com elas regar o meu túmulo.

sábado, 1 de outubro de 2011

Reflexões quase eficientes

Sento-me à mesa pela manhã. Diante de minha fome adolescente estão o café com leite e um pedaço de pão. Fala-me o estômago. Em voz alta afirmo que não gosto de pão puro. A voz de papai me adverte incisiva. Antes puro que impuro meu filho! Até hoje duvido algum pouco de minhas pretensões. Naquele momento apenas parece que me falta manteiga, mas descubro que o pão fora conquistado com decência para a frugal alimentação dos quinze filhos. Daí para diante, desde então, duvido do conteúdo das palavras. Paro sempre para pensar nestes termos gráficos que devem confirmar nossos sentimentos. Amizade pura, garantem-me alguns que perambulam pela minha paisagem humana, aí, quase próximos à própria alma. E me obrigam a perguntar, com outro tipo de fome, se existe amizade impura. Acredito em amizade colorida, isto sim, aquela que faz explodir arco-íris diante de nossos olhos, ao impulso de emoção telúrica. E alguns querem me convencer que existe amor platônico. Procuro no dicionário e ele me traduz a palavra que contém a idéia de amor que se não prende aos interesses materiais. Casto, ideal, diz Platão. Que me desculpe o filósofo, não creio em amor platônico. Talvez casto, mesmo porque o termo me soa bem, é roliço e brando. Há vinhos castos e embriagam.

Sinto informar-lhes que meu amor é táctil. Percebo o qualificativo quando chego diante da estátua iluminada de sensibilidade e não resisto à vontade orgânica de percorrer-lhe as curvas como os cegos, com as pontas dos dedos. Amo em Braille. Por isso não resisto à pretensão de forrar o pão puro com algum pouco de manteiga. Parece carinhoso tomá-lo nas mãos para o ato de cobri-lo com a geléia caseira. Gosto de abraçar os amigos e as amigas. Sentir-lhes a segurança das costelas que protegem os batimentos cardíacos. Olhar-lhes nos olhos, falar-lhes com o afetivo e efetivo aperto de mão. Lamento não conseguir tocar a paisagem, o céu, aquela fímbria de luzes a que chamam horizonte. Mas acaricio à minha maneira as flores, as árvores, os cães. Os pássaros são muito ariscos. Ainda nos obrigam a sermos platônicos. Por isso se mantemos os pássaros em gaiolas, ambos sofremos. Os que amam os pássaros e os próprios. Porque não se deixam tocar. Ou pegar mesmo, corajosamente.

 E as crianças? Atiram-se quase dentro de nós mesmos. Atropelam nossa alma. Enroscam-se em nossos sentimentos. Amarrotam roupas, eliminam vincos de calças bem passadas. Não entendem porque limpamos o rosto depois do beijo lambuzado de chocolate. Ou cheio de grãos de arroz, caldo de feijão, amor eficiente e farelo de pão. Aquele encantador Rabi, há muitos anos, agradece àquele que lhe lava amorosamente os pés depois da caminhada e os refresca com o bálsamo de alto preço. Agradece com mais calor do que aquela que lhe prepara afanosamente o alimento para o corpo. O carinho contém mais proteínas. Ele mesmo molha os dedos na própria saliva e passa-os nos olhos do cego. Fá-lo enxergar. Porque o cura carinhosamente. E pergunta no meio da multidão aflita quem o toca. Tantos o tocam naquele momento, mas é toque de mãos especialíssimo. Cheio de amor, confiança, a afirmativa pretensão de sentir o ser amado. Ouço falar que quem ama não precisa dizer nada a respeito de seus sentimentos. De pleno acordo, porque não se pode falar mesmo durante o beijo. Noticio-lhe que no formal de partilha resta-me este amor táctil como herança de Papai. Ele adora morder as bochechas rosadas dos filhos pequenos. E dos graúdos também. E ouvi-los gritar por entre risos assustados.

Recomendações

Bom dia, me diz ele, com ar sem pressa. Sei que você anda desindexado, nem mais aquele cafezinho amigo, necessário para esquentar a gente neste fundo frio de seu escritório. Dizem que a amizade aquece. Talvez seja por isso que os mendigos andam em duplas. Não estou aqui à toa , diante dessa cara de homem ocupado, nesta manhã de sexta-feira. Pela primeira vez me convenço da importância do tempo que vamos gastar, nós dois, em simplesmente dizermo-nos coisas aparentemente banais. Já há algum tempo me preocupa o tamanho de seu sorriso. Ele anda pela metade. O que se fez daquela cara luminosa, que você empresta pra gente nos dias durante os quais é urgente crer em si mesmo. Vim buscar a outra metade. Ou fazer com que você descubra onde esqueceu a chave-mestra do circuito de suas paixões. Você não pode perder o que há de mais gostoso neste nosso trajeto apressado e que é exatamente uma boa companhia. É a melhor companhia e a melhor companheira. Ou para ser mais claro - a mulher que você enxerga por inteiro, com olhos de canibal por vocação.

Fique viciado nela. O vício é aquele impulso incontrolável que nos obriga a viver à espera. Expectativa do “nosso” instante quando atendemos em plenitude a nossa paixão, decididamente orgânica. É preciso sentir fome, frio, tremores que arrepiem a própria alma. Tudo isto por causa de sua ausência. Ou falta. Não tenha medo de confessar-se dominado por ela. Ou ainda - deixe-se dominar. Entregue-se a essa paixão. Dizem que o verdadeiro alcoólatra é aquele que bebe escondido. Decididamente faça isso. Esconda-a sempre que puder. Sorva-a aos goles. Curtos e lentos. Sinta primeiro o buquê. O perfume da própria casta. Pare o relógio para não ouvir sequer o tic-tac das limitações. Faça-se fluído, entre-lhe pelos poros. Embriaguem-se, e que se tornem doentes incuráveis.

É engano seu. Ela é a mesma, você é que não tem lido, corretamente, a bula desse santo remédio. Bula é isso mesmo. Recomendação. E para entendidos. E eu sempre confiei em sua experiência de laboratório, na composição de poções mágicas, essas que o transformam em Peter Pan, ou naquela fumaçazinha que volta, de vez em quando, para a garrafa do gênio.

Pena que não tenhamos, agora, aqui mesmo, um espelho. Já aumenta um pouco esse sorriso antes mofino. Vamos pensar um pouco mais, e em voz alta. Os músculos exercitam-se. Assim beijos e abraços. Deixar para depois a curtição de uma nuca, o convite luminoso de olhos convencidos é como pagar o empréstimo compulsório. São recursos da felicidade que não voltam nunca mais. Se puder separe seu dia em três partes iguais. Algumas horas para o trabalho, outras para recompor a força necessária ao exercício do amor. Não pense que proponho poemas piegas, recitados à la Verona, sob a sacada, tranças desandando parede abaixo, frágil ascensão. Proponho o amor táctil, que você enxergue nessa mancha roxa o rubro da própria paixão. Que você tenha por aí, quase em todos os lugares, verdadeiro arco-íris.

Por isso estou aqui. É urgente aceitar o sorriso como sinal de sabedoria. São sábios os loucos e os amantes. Riem sempre. Mesmo que não saibam bem porquê. O riso nos obriga a abrir a boca e aumenta a capacidade de oxigenação do cérebro e da vida. A paixão escancara o coração. Evita enfarte, abre artérias à passagem do sangue apressado pela arritmia do amor. Se ela o ama “mesmo” é besteira sua não tomar três refeições ao dia. Esse negócio de regime, nem o militar. A hora é invenção nossa e só serve para não perder o transporte coletivo. É inteligente quem faz a hora, uma hora enorme, da qual ele se lembra só do minuto derradeiro. E com tristeza.

Já me vou. O amor e a alegria são irmãos siameses. Xifópagos.

Ratificação

Tenho vontade agora de pensar solto. Sem os rumos que a gente estabelece para qualquer conversa mais formal. Às vezes sinto necessidade de sentar-me diante de vocês e dizer-lhes coisas bem minhas aqui de dentro, não sei bem se isto é revelação ou simplesmente redescoberta. Porque muitos de vocês me conhecem melhor que eu mesmo. Já lhes disse em certa ocasião que todos nós somos dois. Temos o eu dividido. Mas, descubro que depois de certa idade, quando somos ou não vitoriosos em nossas pequenas escaramuças interiores, sem querer nos unimos, passamos a ser um só. Agora, quando chego a mais uma etapa, e que importa que seja marcada pelo calendário, convenço-me de que mais do que nunca nos unimos os dois de mim mesmo. Não são datas que nos modificam, sim o tempo, esta repetição momento a momento do que somos, de nossos sentimentos, atos e omissões. Agora somos capazes de ratificar tudo o que fizemos, repetir tudo de novo corajosamente. E o que é melhor, sem as preocupações em relação ao mundo e aos homens.

Descobre-se mais alguma coisa como, por exemplo, que o nosso momento é sempre presente. Nós inventamos o futuro. E temos um trabalhão para arrumar o nosso quotidiano para a composição de alguns sonhos. Passo a desfrutar , agora minuto a minuto, coisas e gente mesmo em intenção. O que nesta altura da vida acho mais gotoso e que me entusiasma à alegria? Vocês já perceberam que adoro conviver, também com as dores do mundo porque tenho certeza que me cabe o direito de secar algumas lágrimas. Tantos me ajudaram a enxergar melhor a luz das estrelas, porque me convenceram a manter abertos os olhos da madrugada. Passo a ser um pouco mais exagerado e quero que essa convivência seja efetiva, e isto quer dizer que gosto de explorar a criatura que amo no bom sentido. E esta exploração chega às raias do exagero. O que pouco me importa.

Sente-se, bem solto, na manhã colorida, diante dos netos que brincam. Fique à espera do primeiro tombo. Apenas carregue o pequenino corpo, mas aos beijos. Abafe-lhe o choro com a história do Pedro Malazarte. E garanto-lhe que a lágrima salgada é culpa da máquina de fazer sal do Pedro, aquela que ele não sabe fazer parar. Dê risadas largas, esparramadas, escandalosas.

Mas o bom mesmo é despertar sem compromissos, deixar que os olhos procurem o próprio rumo na penumbra do quarto ainda fechado. E que sejam rítmicos os corações e os primeiros beijos. E que existam descobertas matinais, sem pressa, as pequeninas surpresas de quem ainda não percorrera todos os atalhos do amor. E depois deixar-se quase fluído, ali mesmo, como se tudo não quisesse mais existir. Sentir-se enorme, maior do que o próprio cansaço, fora de todos os limites. Estranho à própria realidade. E compô-la de novo, à realidade, lentamente, minuto a minuto até que chegue a coragem de levantar-se para o mundo e seus encantos agora mais eficientes.

E que a água matinal escorra morna e perfumada, descuidados ambos do barulho do próprio riso e o batismo necessário nesta liturgia que nos faz comungar a própria alma. E que nos revela, no caminho colorido deste pequenino céu, quantas estrelas existem e que se multiplicam mesmo quando temos gostosamente fechados os próprios olhos.

A primeira refeição já foi tomada. Que outro apetite nos resta senão aquele de provar agora e sempre, o dia que nos reserva o esplêndido exercício de viver. Porque é urgente promover descobertas repetidas, a todos os instantes, como se fossem as primeiras. E ficar surpreso do próprio descuido, que lhe não permitira enxergar como é bela a luz que se filtra por entre o cabelo negro e solto.

Ratificar, assim, oficialmente, a própria condição humana. Deixar-se existir. Sem reservas.

Quarenta anos depois

Escrevo estes apontamentos dia 7 de novembro para que se publique em um dos dias que se segue a mais esta sexta-feira, que se apresenta nos conformes e isto quer dizer que se veste de azul ventilado, o vento ágil a arrepiar as nuvens. Há quarenta anos morria Hildebrando Siqueira, meu pai, a respeito de quem tenho conversado com vocês com alguma insistência. E com certeza já perceberam que vale a pena sempre dizer alguma coisa de um poeta. Hoje eu gostaria de conversar com ele, que ostentaria, agora, oitenta e dois anos e que não chegou a conhecer a última filha, a Maria Póstuma, como nós apelidamos a Lurdinha. E não curtiu sequer os três últimos dos quinze filhos. Tenho a impressão que lhe não deram tempo, primeiro porque morreu dessa maneira jovem e apressado e depois porque dava dez a doze aulas por dia para alimentar a tribo, - designação correta daquela falange de glutões.

Pois é Hildebrando, meu pai, você teria oitenta e dois anos e dos quinze filhos, dos que lhe sobram, agora, você encontra trinta e seis netos e dezoito bisnetos e pode crer que a turma melhorou a raça. Há muitos de olhos azuis, como os de vovô Isolino e alguns com cara de índio, quem sabe lembrança das raízes inconfessáveis daquela famosa árvore genealógica que se tentou compor heraldicamente. Mas, é uma turminha boa, alegre, com algumas e naturais confusões, dessas que você demora para entender e cujas soluções, finalmente, mamãe consegue encontrar e as finaliza com aquele sorriso, do qual você há de se lembrar, entre irônico e piedoso. Você precisa ver quando a gente consegue reunir todo mundo, na casa do João Carlos ou na minha, - vale a pena - o movimento fica entre o de uma creche e de um campo de futebol em dia de grande jogo. Poucos conseguem entender-se, mas correm, comem, - principalmente comem - jogam e a final pelos cantos há crianças de todo tipo dormindo, empoleiradas em cadeiras, camas improvisadas, pelos corredores.

Mamãe vai bem e depois daqueles três livros de poesia que escreveu e que editamos para a família, escreve as suas memórias, cujos originais compostos por ela mesma, à máquina, são revistos e repassados pelo Maneco. Anda com um pouco de dor na perna mas, continua indo à igreja e roda o dia inteiro, a trabalhar.

Cá para nós, mesmo depois de quarenta anos passados você faz falta. Já se imaginou conosco, todos os netos e bisnetos e você, com aquela alegria, com a qual nos ensinou, muitas vezes a entender a própria vida, a curtir, agora, a sua cadeira de balanço, aquela austríaca, com o último livro de Quintana? E por falar nisso, conservo a sua biblioteca, algo aumentada pelos que adquiri, livros bons, - todos lidos, veja bem, anotados a lápis, nas margens e até algumas vezes, com caneta esferográfica, dessas que têm tinta vermelha e que parecem macular a página. Bem sei que você não aprova que se machuque o livro, mesmo porque você sempre se considerou bibliomaníaco. Quase me esqueço de dizer-lhe que muitos dos seus netos têm a sua cara, essa boca de babados, que se esparrama preguiçosamente queixo abaixo.

Mas, sabe o que está bom mesmo e que você aprovaria, tenho certeza, na excelente companhia aqui de seus filhos mais velhos? A noite campineira. A cidade se encheu de barzinhos ótimos, com música e cantores dos bons e aquele papo comprido a gente poderia desfiar pelos aí da madrugada, cordialmente, sem susto, cumprindo aquele nosso roteiro, em busca dos caminhos da lua nas águas de algum chafariz. Lembra-se de nossos carnavais? Há ótimo sambão em alguns lugares de nossa terra, com a cor local, decerto fortemente protegida alguma mulata de olhos verdes. Lógico que nos iríamos às redações dos jornais cheirar a tinta preta e embriagadora, confirmar o vício que você me legou, por inteiro, incuravelmente.

Hildebrando, velho amigo, - hoje um amigo velho - é primavera e você continua a ver as cores do mundo pelos multiplicados olhos de sua gente, olhos verdes, azuis, pretos, ariscos, alegres, agora um pouco comovidos.

Beijos e abraços

Não há melhor remédio. Experimente qualquer receita, por mais nova ou extravagante e tenho certeza de que voltará à tradicional, a mais necessária, aquela que dá resultado mesmo. Beijos e abraços, eis a fórmula. A mais simples e antiga para curar beiço caído, cara de choro, dor de barriga. E eis qualquer criança aberta naquele sorriso, enorme, dentro do qual cabe, por inteiro, a nossa própria alma. Não tenha medo que não gasta. Pegue-a, à filha, ao neto, corrompa-o com beijos, faça-o cúmplice de todos os outros crimes, o doce que se deixa, à mão, na prateleira, ou aquela visita à sorveteria contra as ordens dos que depois dormem com aquele pequenino nariz que espirra. Gosto demais até e sei que sou exagerado, do que, aliás, não me importo muito - gosto de abraçar e beijar essas coisinhas fofas, molinhas, que choram com os cotucões de meu bigode espetado. E tenho até algumas receitas muito minhas, particulares, para aquela chuva de beijos e o montão de abraços que tenho vontade de distribuir a filhos e netos e que decididamente entrego, os beijos e abraços, muito mais do que doces e brinquedos. 

São fórmulas simples, como devem ser todas as coisas relativas a crianças, filhos ou netos. Se o Bruno tira, à muque, o carrinho da Bertha há o famoso beijo de advertência. Você pega o neto mais velho, coloca-o no colo, e dá-lhe o beijo mordiscador. Isto quer dizer que você beija perto da orelha ainda cor-de-rosa, de forma tal que pequena mordida arrepie a ponta da dita cuja. O susto do moleque e a alegria da vítima são fundamentais ao resultado final. O carrinho volta à Bertha, que por seu turno deixa em paz o Fausto que deixa em paz o Eduardo que deixa em paz o Gabriel. Aliás, o Gabriel vive em paz. Dá idéia de tatu-bolinha. Ou rechonchuda pequena taturana, os olhos muito abertos aos ruídos do mundo.        

Há outra fórmula ainda mais adequada ao tratamento disciplinar de netos e filhos. É o famoso abraço coletor. O filho chega de madrugada numa boa, pouco se lhe dá o susto dos velhos. No dia seguinte abrace-o bem apertado, traga seu coração perto do coração velho e assustado. É magnífica coleta de sons. Os dois corações não sabem bem se estão no mesmo ritmo. E logo descobrem que sim.          

Basta. Na madrugada seguinte o filho notívago já chega de braços abertos, convencido de que filho e madrugada foram feitos um para o outro, e que pais e avós foram feitos para esperar assustados. E que se abracem como esplêndido remédio, certos de que o bom mesmo é esta volta repetida e quotidiana a este mundo que deverá ser de beijos e abraços. Não quero me esquecer do beijo de remissão. Este é muito importante e deve ser utilizado sempre que você enche demais uma criança. Isto significa que quando você não consegue ser gente com os miúdos, à noite, sente-se à beira da cama pequenina e fique beijando, no escuro mesmo, aquele negocinho gostoso que ali está, filho ou neto. É extraordinário alívio a pais e avós que têm algum problema hepático, os que sofrem do fígado. Ficam ambos curados, fígado e coração. Experimente.  

Dê uma colher de comida e um beijo. A criança engorda muito mais. Não há nada mais protéico do que o beijo. Engorda e faz crescer. O duro é que o pai, o avô, ali de lado, há de querer o mesmo tratamento. O triste é que avô não cresce mais. E não vale a pena engordar demais velho. Implode. E se a lição deve ser feita em casa porque não a quatro mãos ou dez beijos? Podem crer que fica tudo muito mais bonito e bem feito. As cores mais vivas e a letra um pouco trêmula por causa dos ditos numerosos beijos.               

Tudo isso não é receita só para o dia oficial da criança. É para todos os dias. Todos os meses. A vida inteira. Filho é sempre filho. Criança é sempre criança. Olhem um pouco para dentro de vocês mesmos.         E querem saber de uma coisa? Beijos e abraços são receita para todo mundo. Para gente grande e gente pequena. Filhos e mães. Netos e avós. Próprios e alheios.

A véspera e o berço

Ele já amanhece de olhos mais abertos. Não quer perder nada, os menores movimentos, as cores do mundo, a perplexidade das forças. Respira mais fundo, pretende que entre, pulmões adentro, com o perfume das gentes e das coisas, a constatação do novo dia. Isto ocorre todo dezembro, como se fosse diferente o tempo dos outros meses. Podem crer que vira quase criança e para não mentir à própria sensibilidade se convence que jamais deixa de ser moleque. Apenas fica um pouco mais assanhado. É a expectativa em tudo igual à da próxima viagem. Ou da grande festa. Dizem que a véspera é sempre melhor. Então dezembro é feito de vésperas. Todos os dias ele abre janelas e portas como se fosse encontrar o céu cor verde-gargalhada, flores vermelho-loucura, gente azul-perdão. É porque a véspera guarda a surpresa do amanhã. Pois em dezembro ele vive convencidamente a surpresa já. Elimina o ontem devagarzinho e suspende por tempo indeterminado a significação do amanhã. Passa a valer o aqui e agora, a intensidade de todos os gestos, aquela força que nos penetra de alguns olhares especiais, desses que saem lá de dentro com o mais apurado controle de qualidade.     

É o seu primeiro dezembro de sexagenário e ele descobre este registro civil quando lhe pedem que se identifique para que receba o crédito social dos cobradores. Todo cadastro perturba. Aquela relação de datas e de coisas que devemos compor para o cheque especial sempre provoca alguma frustração. Porque temos anos demais ou coisas de menos. E nos parece pior quando temos o tempo escorrido e, ao lado, a pobre conquista, os poucos valores que garantem algumas novas estrelas. O crédito é a véspera do gastador. Pois dezembro incita a ser perdulário, dar as costas aos gerentes sutis dos bancos indexados, que acenam com juros e tributos sobre os limites que ele consegue vencer. Dezembro lhe faz ultrapassar todos os limites. Sente se portador de crédito ilimitado. Assina, todos os dias, se lhe pedirem, cheques em branco simplesmente porque é dezembro. É esplêndido viver o crédito do quotidiano. É como festejar na véspera. A gente aproveita duas vezes, principalmente a cara de pânico do credor mais próximo.  

Quando mais uma vez arma o presépio, sempre ali,  no canto da sala, para que o possa ver, a manjedoura, os pastores e pequenos bichos que se esparramam por montes de serragem e pedras de beira de rio - o pequeno berço lembra-lhe a véspera de todos os tempos. E lhe dá ganas de viver a sensação do primeiro aconchego, da espera. Todo berço é a expectativa do novo. Como a um sexagenário se permite a pretensão do berço? Basta viver, aqui e agora e sempre, a sensação do novo. E é tão simples ocupar se de alguém. Mas ocupar se mesmo e isto quer dizer viver a véspera do amor eficiente. Aproveitar o crédito do patrimônio comum do amor repartido. Ou da comunhão universal de bens, regime que se institui desde os primeiros dias do homem.    Não há berços vazios, pensa com os próprios botões. E o sexagenário descobre o berço ocupado por sua própria véspera. É cofre novo cheio de créditos. Ou cheque especial que pode aproveitar além do limite das estrelas.             

Mas ele ainda quer o seu presente. Além do aqui e agora, também o pacote florido. Para viver a véspera, gastar o crédito, particular do novo é preciso o amor adolescente. Da descoberta. O amor adolescente descobre na véspera. Ao abrir o pacote o sexagenário recebe como presente, na véspera festiva, o amor adolescente.

A história do vovô Hildebrando

Algum dia hei de contar às minhas filhas, depois de montá-las a cavaleiro, uma em cada perna, a história bonita que começa assim:

Era uma vez um menino de cabeça grande e olhos curiosos que vivia dando a todo mundo um pouco de seu coração. Era um menino já crescido que não conseguia convencer-se da importância das calças compridas e da seriedade dos cabelos brancos que lhe pintavam a fronte. Vivia contente e por isso não se importava com a preocupação inútil dos que não entendiam como lhe era fácil esbanjar sem cuidado fortuna herdada e que lhe não voltaria às mãos.

Sentava-se, às tardes, na cadeira de balanço de chiado comprido - carro-de-boi em andadura sonolenta - e rodeava-se de outras crianças contando-lhes histórias e ao cabo dava-lhes, e sempre, mais um pedaço de coração. Eram naqueles momentos felizes, crianças, eles todos, esquecidos da vida, identificados naquele sentimento estranho, gostoso, que os fazia amarem-se perdidamente.

E aquele menino crescido de cabeça grande e olhos curiosos aquecia-os com o mais delicioso dos afetos.

Outras vezes deixava-se ficar, no domingo, ao entardecer, improvisando uma orquestra de assobios, entretendo os pequeninos - habitantes bulhentos de um mundo de felicidade.

E vocês vejam qual era o compasso daquela música diferente - os nós dos dedos batidos habilmente nos braços da cadeira de balanço de chiado comprido. O preço da entrada - um beijo na testa...

O menino de cabeça grande e olhos curiosos tinha uma porção de brinquedos. E vivia com eles a maior parte do tempo - longe dos homens grandes, dos que andam por aí tropeçando intencionalmente nos desejos dos outros...

Eis os brinquedos do menino bom - uma porção de livros e uma rapaziadinha miúda e levada da breca. E era cada vez mais feliz sempre que trazia para o convívio amável das estantes mais um livro ou ganhava outra cabecinha de movimentos vivos e choro pronto a chamá-lo algum dia para perto de si a pedir-lhe sempre, e cada vez mais, um pouco de coração.

Parece que só estava contente dando alguma coisa de si mesmo. Tudo o que possuía tinha vontade de distribuir aos companheiros nada pedindo em troca. Bastava-lhe dar. E estava contente.

Acreditava que todos eram bons, tinham gestos de irmãos e amavam-se uns aos outros, como é de preceito.

O menino grande fazia versos e construía cidades de caixas de sapato vazias com ruas cheias de automóveis de corda. Estudava em livros pesados e sonhava o sonho bom de todos os que possuem, de seu, a consciência tranqüila. Sorria ao pôr-do-sol e cantarolava as madrugadas quase vazias quando se disputavam nas assonâncias os pássaros do jardim fronteiro e o último moleque deitado no berço humilde.

O menino grande de cabeça repleta de maravilhas e bolsos de poeta perdia-se vezes sem conta atrás dos passos incertos do penúltimo, com o livro aberto, interrompido quando lia o trecho bonito à companheira de todos os momentos.

E de tanto dar de seu coração um dia percebeu que nada mais lhe restava.

Foi um dia melancólico, triste de verdade. Ninguém esperava que o menino de cabeça grande e olhos curiosos deixasse a gente assim tão de mansinho. Não quis se despedir de ninguém. Pra que?

Deixava em cada um, um pedaço de seu coração. Dera-lhes tudo. Até os próprios instantes de alegria. Repartira com seus pequenitos o menor de seus sorrisos, o mais pobre quinhão de sua fortuna. Partiu em silêncio, porque as palavras eram inúteis. Demorou, entretanto, o olhar carinhoso sobre os companheirinhos de travessuras e horas despreocupadas - como que a contá-los para o jogo alegre do “esconde-esconde”...

E depois que se foi aconteceu o milagre. Em cada uma das pequeninas feições que rodearam assustadas o seu amor de irmão, descrentes de sua ausência, em cada uma delas permaneceu, indelével, um pouco de seu encantamento, de tal maneira que a gente o encontra todos os dias, numa atitude, numa palavra, num desejo - em cada um dos brinquedos bonitos que ele amou tanto, tão pouco tempo.

Minha secretária

Sou removido de uma secção para outra, aqui no serviço onde trabalho. Não gosto do que faço. Metem-me em questões de contabilidade, do que pouco entendo. Antes faço coisas do meu feitio - sou encarregado da secretaria. Por isso escrevo cartas, relatórios, coisas parecidas. A outra secção fica lá em cima, no andar superior e somos numerosos funcionários, todos sob a minha direção. E com a cara mais amarrada do mudo passo a aprender o novo serviço, a compor quadros projetivos de vendas, rotação de mercadorias em prateleiras de armazéns, recebimentos e pagamentos mensais e registros cheios de números que me cansam e roubam o entusiasmo. Mas é preciso fazer porque é preciso trabalhar. Não há outra alternativa. Eis que ainda nos primeiros momentos, descubro que tenho secretária. A princípio não lhe faço melhor cara - uso a mesma, aquela de quem se sente espoliado pela vida e pelos homens. Vítima? Vítima do que começo a perceber que vale a pena ter secretária. Que ela é atrevidamente bonita e que fica com a mesa posta bem defronte de minha própria mesa, emoldurada por gráficos, mapas e controles presos à parede atrás de sua máquina de escrever.

A princípio os números me absorvem. Depois, ora os números! Acompanho todos os movimentos de minha secretária. Quando levanta, anda, ri, movimenta os braços. Ah! Os braços! Machado de Assis tem razão. O rosto me apaixona desde os primeiros momentos de minha peregrinação por seus encantos. Morena – um moreno teluricamente queimado, longos cabelos negros. Veste-se tropicalmente em cores claras, com discreto mas insinuante decote. Onde ficam meus mapas de controle? E, os registros da rotação das mercadorias nas prateleiras? O que faço nesta mesa, tão distante da mesa de minha secretária? Procuro conhecê-la melhormente, sem burocracia. A família, os gostos, o que lê, com quem anda e principalmente alguma coisa de sua sensibilidade - ou para ser mais claro, se é casada ou se tem namorado. É solteira e noiva. Não desanimo. Multiplico as razões de procurá-la, ali, na secção, a pretexto de qualquer pretexto. Ou sem nenhum pretexto, apenas para dizer-lhe que o céu está estranhamente azul, - azul-júbilo e que fica muito bem para ela estar ali, contra o céu, na janela - o azul realça o seu tropicalismo.

É simplesmente linda. Não faço outra coisa a não ser admirá-la e ela percebe. Vivo nas nuvens. Ao invés de balancete de vendas componho poemas. Longos poemas que revelam a atrevida decisão de roubar ao noivo a minha secretária. E naquele dia, ali na escada, peço-a. Quase morro quando ouço a resposta - um talvez que nos une desde então. Namoro a minha secretária desavergonhadamente até hoje. Não escondo os exageros de meu amor – esqueço-me até mesmo onde estou quando posso admirar o rosto moreno, que depois de tanto tempo continua a obra prima da natureza, os cabelos não tão longos, não tão negros, mas que percorro no cafuné malandro dos instantes de êxtase. Ainda lhe ficam muito bem as cores claras e os decotes discretos. E, descubro, com o tempo, muito mais próximas as almas, novos encantos, qualidades esplêndidas. É veraz. Convencidamente inteligente, sensível. E econômica. Sabe cozinhar. Perfeita. E para completar estimula minhas maluquices, a profissão que abraço, os esforços para corresponder à própria vida. Agora tenho certeza que me ama, depois de tanto tempo, de tanta peripécia juntos. Tenho certeza. Tanto que já me deu quatro netos encantadores, quase todos morenos como ela. Oi! Desculpem meus amigos! Esqueci-me de dizer-lhes que me casei com a secretária. E, isso já faz trinta e quatro anos, o que prova a extraordinária resistência de Amina, minha mulher.

Há pureza no pecado

Há estranha pureza no próprio pecado. Neste que se identifica pela ginga gostosa do corpo, ao ritmo quente do bongô, no amplo caminho do samba. Há estranha contaminação na folia - o necessário contágio da loucura. E por isso é preciso estar lúcido para curtir o riso. Comover-se com a própria gargalhada. E, que importa o tipo de vestimenta, mesmo que a ela se chame fantasia. É Carnaval e é preciso ser e estar alegre. Mesmo que isto custe algum sacrifício - custa pouco o esforço de ser folião. Você já se deu o trabalho de esquecer não apenas agora nestes curtíssimos três dias, mas em algum outro momento de sua experiência de porta-bandeira, aquela outra máscara? Essa mesmo! A que você afivela quando discute consigo os índices da bolsa de valores. Ou aquela outra que você não consegue despir na mesa dos trabalhos coletivos que procuram colocar mais alguma coisa no prato de comida do seu irmão de quotidiano. É que o outro pouco se falta àquele que não tem fantasia talvez lhe falte para a própria fantasia

Mas e necessário pecar, porque é bom brincar de bandido, os revólveres de água perfumada cheios de bom líquido e que molhem por dentro e por fora a alma que se incendeia a cada passo. São dias de folia. Por que você não adere? Tem medo? Da multidão? Mas ela é sempre assim. Você é que não percebe quando caminha apressado, a bolsa na mão esquerda, na direita o cuidado com a carteira. O perfume que se consome agora, neste momento de comprometimento amoroso, é diariamente ofertado à sua sensibilidade. Você é que não sente. Está muito ocupado com a própria pureza. Não peca.

Não peca o pecado de ser folião, Isso mesmo! Ser folião trezentos e sessenta dias de seu ano ou exercício fiscal, sem medo de qualquer tributo porque você aplica, sem limites, a própria dignidade. Ponha já a outra máscara. Esta está poída. Rasga-se nos cantos dos olhos e deixa-lhe à mostra as rugas de estranha preocupação. Esconda-se de novo em nova máscara, sem frestas. E cante. É Carnaval. Mas sempre é Carnaval, você é que está ocupado demais consigo mesmo e não consegue enxergar o cordão que lhe estende série de mãos comovidamente alegres, que pretendem puxá-lo para a corrida louca, por isso mesmo urgentemente bela.

Não pare ainda. Você vira cinzas quase agora, e não é tempo. Faltam os desfiles coloridos, os carros alegóricos. Ainda sobra confete no saco plástico Por que a economia de serpentina? São coloridas legações entre risos. Ou fios condutores que você pode aproveitar para realimentar a própria alma. E vale a pena. Agora, vamos falar sério. Por que você não gosta de Carnaval? Fica aí trancado atrás do paletó, amarrado à gravata, esplendidamente comprometido com a própria carranca. Eu lhe garanto que é timidez. Se você parar diante de você mesmo e pensar há de descobrir que todo o mundo é folião, bem lá dentro. E que esconde o tipo fantasiado que o compromete. De medo. E justifica com a célebre afirmação de que há riscos. E é verdade. A felicidade é risco permanente. A esperança é verdadeiro jogo.

Você não aproveita a oportunidade de estar em Carnaval. Mamãe não deixa? Pobre menino-grande! Como é gostoso contrariar a Mamãe de vez em quando. A marca do beliscão é ponto de honra. De qualquer moleque que se preza. Por que você não vive marcado? Em permanente Carnaval. A fantasia já lhe impuseram. Aproveite o ritmo. Peque sem susto.

Aprendizado Doméstico

Ainda hoje sou aluno aplicado, escuto com atenção, leio com aproveitamento e ponho em prática as lições que recebo. Principalmente as lições de amor. E não há melhor compêndio, livro que contém as lições fundamentais - nada melhor e mais completo do que o casamento. As aulas são os momentos repartidos, em que se trocam os valores do afeto e a grande e única mestra é a mulher. E, geralmente, elas fazem pós-graduação na maternidade, quando geram nos filhos a própria eternidade. Somos aprendizes domésticos, nós, os homens, e nos especializamos quando elas nos entregam pequenos pacotes embrulhados e barulhentos, nos ensinam que ali dentro cabe, inteirinho, um novo mundo. Aprendo, ainda hoje, passados tantos anos, já agora na segunda fase, quem sabe esta do doutoramento, com as mães de meus netos.

Enquanto, a pretexto do exercício da atividade de viver, nós, os maridos e pais, temos como nossos todos os minutos do tempo, elas, as mães ofertam todos os tempo, minuto a minuto, a ocupação permanente de todos os sentimentos. E não reclamam férias. Daí aprendemos convencidamente a importância da doação, desta entrega total, que se traduz na dedicação, na soma de cuidados, no interesse às mais das vezes corajoso, que alimentam pelo amadurecimento dos próprios frutos

E, sem querer assumem, as mulheres, a maternidade dos próprios pais. Dos pais de seus filhos. E os educam também e quase sempre conseguem vê-los formados. E nos ensinam que na escola dos amores, o nosso lugar é sempre garantido, porque elas são os próprios filhos, sou fruto desta maternidade e continuo aluno desta escola de pais.

Minha mestra, minha mulher, - mãe de meus afetos - sabe e quanto deixo por aí, de egoísmo, dia a dia, desde os primeiros momentos, e ainda hoje, nestes anos de aprendizado. Somos capazes, nós, os pais, depois de algum tempo, de retirar a amálgama do espelho. Antes nos enxergávamos. Hoje nos vemos nos netos e filhos, nós os alimentamos, os vestimos, caminhamos pelos seus pés. Descobrimos, nesta escola de pais, que somos seres múltiplos. Conjugamos todos os verbos no plural.

Ela, a mãe, nos ensina a conjugar. E compomos a quatro mãos.

Por outro lado, dou um trabalho tremendo à minha professora. Sou muito preguiçoso. Irrequieto. Adoro atirar ostensivamente pequenas bolas de papel nos meus companheiros de classe. E notem que sou o mais velho de todos. Ela não consegue me disciplinar. Me adverte de meus cabelos brancos. Manda-me sentar com dignidade. Rir com comedimento. Fiscaliza as combinações de cores das minhas roupas. O furo do meu sapato. Mas, não adianta e parece que se esgota sua paciência, porque outro dia fico sem recreio. Não me deixa ir ao Barricada e corta-me a sobremesa.

Entretanto, lá no fundo de seus sentimentos sei que ocupo o lugar de um de seus melhores alunos. Pelo menos quanto à dedicação. Posso não aprender rápido, levo tempo, mas não esqueço os melhores métodos para os melhores beijos, como se unem as mãos, lá atrás, no abraço mais apertado. E sei que é bom recostar a cabeça em seu colo e gosto de repetir a lição de ouvir, ali perto, bem perto, a batida de seu próprio coração.

Podem crer que nasci com meus filhos. E cresço com eles.

Deixe-me beijá-la, professora, sem muito respeito, aí quase no pescoço, enquanto você costura, distraída, a pequena camisa de um de nossos netos.

Meu pai e a Academia

Escrevo estes apontamentos nesta sexta-feira, 5 de novembro, aniversário de meu pai, Hildebrando Siqueira, morto aos quarenta e dois anos e que agora completaria setenta e oito - poderia estar vivo e nós dois a trocar estes registros nas conversas que mantínhamos ao pé das estantes, na casa cheia de livros e criança. Dá-me vontade de relembrá-lo mais uma vez quando leio a notícia da eleição de novo membro da Academia Brasileira de Letras, entre os nomes que disputavam uma das vagas existentes - exatamente aquele que nos parecia, a todos, pela ordem natural dos valores, o que deveria aguardar nova oportunidade. Meu pai prezava, sobremaneira, a Academia e, por extensão, todo e qualquer instituto cultural que o mantivesse em permanente diálogo com todos os interessados, na difusão dos conhecimentos, fossem literários ou políticos ou, ainda históricos. Era membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, graças às obras que publicara a respeito da história dos franciscanos na zona de Amparo e Serra Negra. Da própria história de Serra Negra e a respeito do Morgado de Mateus e outras figuras da Colônia. Fazia parte, ainda, por trabalhos literários e históricos que apresentara, ao Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas, ao PEN Clube Internacional, ao Instituto de Heráldica e, o que mais me chamava a atenção era o fato de que comparecia a todas as reuniões.

E, dizia, durante os nossos colóquios, que cultura nada mais representava senão a experiência partilhada e que não havia nenhum valor em conhecer sem divulgar. Em ler sem discutir, e assim preconizava os encontros literários e culturais, entre afins, como a solução para a própria saúde da alma humana. As Academias, dizia Hildebrando Siqueira, - poeta e jornalista, historiador e orador significativo - significam o ponto alto dos encontros intelectuais, não apenas a premiação, o galardão que se entrega a quem dele faz jus, mas o marco, sinal, roteiro, do próprio pensamento cultural caboclo e deve ser, a Academia, o permanente diálogo das grandezas da própria sensibilidade.

Pertenço à Academia Campinense de Letras - com muito poucos méritos e quando eleito escolhi para meu patrono meu Pai, Hildebrando Siqueira, convencido de que dele deveria ser a cadeira que ocupava, ele sim, o literato por excelência, mas e principalmente porque senti que deveria mantê-lo conosco, ali naquele novo cenáculo, para que continuasse o diálogo da própria cultura, por minha alma e meu comportamento como se fora, o meu próprio corpo, e extensão de sua enorme sensibilidade. Porque prezava as Academias e mais do que todas a Brasileira de Letras, e porque defendia a importância dos encontros culturais preconizo em sua memória nossa Academia Campinense de Letras neste novo ano de trabalho, a função político-social dentro do campo da cultura, de centro aglutinador de estudos, reflexos, orientação de inteligência para a inteligência que se deve forrar de novos conhecimentos e mais do que tudo isto, aquela que se deve enriquecer com a troca esplêndida que se efetiva no diálogo constante. Às academias está reservado o papel de sinalizador dos tempos - não apenas apelo e advertência, mas pronunciamento engajado e definidor, através da cultura e da experiência partilhada, a fim de que a verdade se instale - como o único remédio à própria dignidade humana - verdade que agrida e por isso mesmo desperte.

Leitores e Amigos

Por que escrevemos? Qual a razão desta força, quase compulsão, que nos leva, às mais das vezes, a escancarar o próprio coração? Queremos conversa conosco mesmos? Esta prosa que traduzimos através das palavras, que se nos brota, sensivelmente, deve necessariamente ter um destino. Não falamos sozinhos. É fundamental a quase certeza de que alguém mais compartilha dos nossos interesses, caminha quem sabe o mesmo caminho, olha o mundo e os homens e os vê com as mesmas cores com as quais os revestimos. Há certa angústia nas palavras do escriba. Principalmente aquele que compõe esta apressada literatura de vinte-e-quatro horas, aquela que se extingue, gostosamente, à luz do sol poente. É preciso ouvir a voz durante este dia de alguém que nos diga alguma coisa. E que importa que seja a crítica acerba, que nos machuque, porque mesmo ela com a dor que carrega no seu bojo nos adverte da existência do mundo. É boa a mão que afaga. Também nos estimula a mão que agride.

Mentem para si mesmos os que afirmam que lhes não importam quantos os lêem, porque tenho certeza, comovidamente, que é profundamente construtivo o aperto de mão, aquele telefonema apressado, a simples palavra que nos garante a comunicação. E sabem por que nos interessam os amigos e leitores? Se pudéssemos colhê-los todos os dias quem sabe os agradássemos conhecendo-lhes os próprios sentimentos. E posso lhes garantir que tenho vertido neste canto-de-coluna, nestes últimos anos muito de mim mesmo. Sem medo. Utilizo, às vezes, a ironia, a brincadeira, tipos que vivem em mim mesmo, com os quais converso, para com tudo isto dizer exatamente o que penso.

Na verdade, meus amigos, eu me descobri depois dos cinqüenta anos. Não tive tempo antes de enxergar este companheiro que sou, o amigo das madrugadas, o apreciador de serestas e barzinhos sorridentes. Pois foi através desta descoberta, do novo amor que me oferto, foi através dele que pude ver melhor e mais de perto os que amo. Ama-se, decididamente, melhor o próximo e quase efetivamente quando se ama a si mesmo. Por isso eu quis dizer-lhes e o tenho feito, tudo o que sinto e penso, de mim e da vida, para nosso melhor convencimento, principalmente do quanto nos devemos amar.

Há muito tempo eu estava querendo mandar-lhes este bilhete, a todos os que me lêem, para afirmar-lhes, mais uma vez, que eu existo porque vocês existem. E tenho certeza e preciso dela para continuar  a escrever-lhes. Passo a semana a selecionar os meus assuntos, estes com os quais descubro, diante de mim mesmo e da vida, a beleza das coisas. E preciso sentir que a prosa escorre dos meus dedos, porque foi toda ela já composta aqui dentro, sei lá onde - se nos cantos coloridos do coração ou nas volutas sonhadoras do cérebro. Deve ser uma associação entre eles - cérebro e coração, para que se tenha o produto mais legítimo do amor definitivo. Gostaria de dizer-lhes o próprio nome, chamar-lhes pelo apelido e olhar nos olhos. Isto faz bem. Nada mais nos aproxima do que a luz que refletimos aqui de dentro. Parece que os olhos guiam, desde aqui fora, os nossos sentimentos, o convencimento, a amizade, e leva tudo isto com a própria luz, lá para os refúgios do amor eficiente.

Os amigos não se desculpam. Quando muito toleram-se. Por isso eu quis que as palavras viessem sozinhas, aqui se colocassem em filas ordenadas, mas que trouxessem exatamente o que vive em mim. O desejo de conviver. Que é muito mais importante do que viver. Conviver mesmo, com o meu quotidiano, com o companheiro, a família, a cidade, a minha igreja. E com o Corinthians. Conviver intensamente, todos os minutos, exageradamente, como faço nas minhas aulas, com os meus alunos, quando ocupo os quatro cantos. Não só da sala, dos tímpanos ali dispostos e dos olhos assustados dos que me vêem pela primeira vez. Mas vale a pena.

Gosto de estar só para me lembrar do momento em que estive com você.

Leitores e Livros (I)

Desde que me conheço por gente enxergo ao meu redor estantes cheias de livros. Papai, Hildebrando Siqueira, era bibliomaníaco. Isto quer dizer que além de gostar de ler gostava do livro. Eis um dos meus vícios - a leitura. Não sou fanático, mas procuro ocupar alguns momentos de minha vida com a melhor companhia, a de autores e livros que me conduzem para novos mundos, riqueza de idéias e, assim, tentativa de novos procedimentos. Estou a pensar em voz alta, nestas férias de julho, enquanto corrijo as provas de meus alunos da Faculdade de Direito, a respeito da leitura. E, de como é urgente tentar que leiam mais, moços e velhos, a fim de que percebam quem sabe melhormente belezas que a vida reserva aos que abrem os olhos da alma. Lê-se pouco e lê-se mal. Em primeiro lugar vamos conversar a respeito de bibliotecas. Quando a maioria dos lares possuir a sua biblioteca, por mais modesta que seja, mas inteligentemente selecionada, teremos atingido o momento em que o desenvolvimento é consentido. Todos os que participam do processo do crescimento social devem desejá-lo. Isto é, devem ser autores do processo e não atores no processo. E, como enxergar melhor? Podem crer que a leitura ajuda decididamente até a curtir melhor o próprio destino.

Há excelentes bibliotecas em Campinas, desde a Municipal e central que é muito bem organizada, às das Universidades, do Centro de Ciência, Letras e Artes, da Academia Campinense de Letras e outras e muitas mais. Já levamos nossos alunos às bibliotecas? E nossos filhos? Nem todos podemos comprar livros e muito menos todos os livros que gostaríamos de comprar. Por isso é bom freqüentar bibliotecas. O hábito de estar com o livro, de manuseá-lo, quem sabe não baste. Ler e conversar a respeito da leitura, digerí-la e sentir-se alimentado quem sabe seja aquilo que chamamos de cultura. O que resta - o caldo que fica do alimento ingerido e o conhecimento novo, que nos conduz com mais segurança. Não sei o que fazer para que os meus alunos leiam. A leitura obrigatória apenas não leva a bom destino. É preciso que se tenha vontade e que se procure o livro, que se o tenha como alguma coisa além da descoberta de heróis e bandidos, mocinhos e mocinhas, mais ou menos amorosos e disponíveis.

Aprendi a ler. É preciso ler à maneira daquele leitor que pretende tudo do livro. Vou descrever a fórmula de leitura. E a adoto para qualquer gênero, desde o mais indigesto livro de Filosofia àquele romance gostoso e leve que nos entretém na sala de espera do dentista. Rabisco o livro. Primeiro hábito e que nos obriga a ler junto com o autor. Riscar a frase mais significativa. O pensamento que se sobressai deve ficar marcado. O trecho mais bem composto se acentua sob os traços da ponta que deve ser bem fina. Quando possível auxiliar-se do dicionário, mesmo para procurar apenas mais um significado para a palavra conhecida. E, manter junto com o lápis uma ficha de leitura. Aquela ficha que todos conhecem e que serve para registros gerais do pensamento. Anotem o que pensaram durante a leitura. Recomponham a sua conversa com o autor, a análise do tema, a frase que lhes parece mais expressiva. Deixem a ficha dentro do livro que foi lido. Leiam em qualquer momento, posição, lugar, e sempre que possível com interesse. Leiam até o fim, mesmo que o livro lhes seja maçante. É disciplina, embora às mais das vezes, aborrecida, mas que permite a crítica mais honesta. Finalmente parem para ver a banda passar. E, façam como a moça triste da inspiração do poeta. Fiquem alegres, porque há sempre novos acordes na partitura da vida.

Informações às nuvens (II)

Chegamos juntos, os dois, até aqui a esta provecta posição cronológica, a dos sessenta. Os dois, o Xyko respeitável e o outro, aquele reconhecidamente vagabundo. Nenhum consegue convencer o vizinho. Cada qual à sua maneira procura o lado bom da vida - o primeiro no trabalho que alguns garantem que dignifica, e o segundo nas madrugadas que lhe sobram, pelos aí da vida, quando pode curtir gente. Gente da madrugada, certamente. Nessa hora em que gatos são pardos, mulheres encantadoras, conversas toleráveis à luz sempre gostosa dos botecos cujas mesas parecem eco, repetem as histórias uns dos outros, dos habitantes da madrugada. Convivem. Aquele que reclama eficiência. Este que exige decência. E ele, o Xyko boêmio chama decência o respeito devido à luz do sol poente, aos brotos que crescem, de repente, na parreira encostada à janela, à onda natural da anca, aquela que lhe vai à frente. Enfim, a tudo o que dignifica o gênero humano. Por questão de ordem vamos chamar de Xyko I ao solene e de Xyko II ao irreverente. Esta disposição de valores já é fruto da organização do primeiro, evidentemente.

O primeiro tem arquivo, guarda cartas velhas, recortes, pensamentos que colhe da folhinha do calendário religioso. O segundo não se lembra quando foi a última vez que recortou alguma coisa. Quem sabe algum retrato de mulher bonita, suficientemente pouco vestida, aí pelos idos dos quando apenas tinha olhos para ver. O primeiro levanta cedo. O segundo é arrastado nessa tremenda madrugada, apesar de todo o resmungo surdo e o convite azul de algum céu prematuro. Enquanto aquele lê os jornais durante o café frugal, o outro procura judiações na geladeira, aqueles restos dos muitos ontem culinários, e mastiga com raiva para que tudo nele fique mais desperto. Tem fome pela manhã. É marcado sinal de revolta. Vão em silêncio durante o trajeto de carro entre a casa e o escritório. Pouco conversam. O número um pensa nos negócios que deve resolver. O número dois nos subterfúgios que há de adotar para alguma fuga inteligente, que lhe permita transitar pelas cores do mundo. Geralmente inventa alguma viagem heróica. Vai buscar algum processo na comarca, mais próxima. A estrada que percorre é fuga, parece-lhe a busca do infinito.

Por motivos óbvios convivem. Outro dia reuniram-se para entendimento que ambos julgam importante e que se refere às comemorações efetivas do sexagenário. Os sessenta. O primeiro, o solene, quer formação na praça, banda de música, hasteamento da bandeira e notícia nos sociais. O segundo, seresta na madrugada que antecede o grande dia, rodadas hídricas como sessão de cinema, para os diversos grupos de amigos, dos diversos planos da madrugada, e à noite, aquele sambão. Mas ambos têm um ponto em comum, quem sabe missa campal, com todos os padre amigos e são muitos e quem sabe consigam indulgência plenária. Nenhum dos dois aceita o local escolhido. Nada de campo de futebol. Em uma coisa ambos concordam e convivem mais estreitamente. São corintianos. Preferem praça pública ou salão de clube de primeira. Bem grande.

Resolvem redigir, para que fique perpetuada a data, uma carta de princípios. Não conseguem sair do primeiro artigo. O número um propõe que contenha referências solenes aos pressupostos fundamentais da filosofia humana. O segundo quer que o texto seja o mais enxuto e que comece e termine com este texto: “Artigo Único - Revogam-se as disposições em contrário”. Evitar-se-á, diz o número dois, a tal comissão de sistematização. Há esperanças que os dois de mim mesmo se unam em torno à redação comum.

Felizmente são um só quando amam. Confundem-se. Ninguém distingue ninguém. Amor táctil, corajoso. Bem corintiano. Amor que começa devagarzinho e chega à glória do título.