Durante cerca de 20 anos, Francisco Isolino de Siqueira tem suas crônicas publicadas semanalmente no jornal Correio Popular, de Campinas. Escrevendo sobre o quotidiano da cidade e das pessoas que povoam sua vida, o advogado, jornalista e professor analisa e acompanha as condições econômicas, político-sociais e afetivas que definem os relacionamentos de seu tempo. Sempre através de verdadeiro diálogo com seu "leitor e amigo".

Seja destacando as obras desenvolvidas pelas entidades assistenciais da cidade e chamando o leitor à participação eficiente, seja incentivando os jovens à leitura e à inserção na vida política de sua comunidade ou ainda, relatando com humor as histórias de seu primo, "aquele que sofre do fígado", Isolino de Siqueira desenvolve estilo próprio e marcante de registrar, em forma de crônicas, o mundo à sua volta e também aquele dentro de si.

As crônicas publicadas neste blog são amostras de seu estilo literário cativante, original e pessoal, que conquista o leitor, mantendo vivas as suas mensagens, poesia, beleza e valores atemporais.

Boa leitura. Ou melhor, bom diálogo com este corintiano "irmão de quotidiano".

"Se eu pudesse recomeçar eu procuraria fazer meus sonhos ainda mais grandiosos porque essa vida é infinitamente mais bela e esplêndida do que eu pensava, mesmo em sonho". - Francisco Isolino de Siqueira

(trecho extraído da crônica "Colóquio")

sábado, 1 de outubro de 2011

Quarenta anos depois

Escrevo estes apontamentos dia 7 de novembro para que se publique em um dos dias que se segue a mais esta sexta-feira, que se apresenta nos conformes e isto quer dizer que se veste de azul ventilado, o vento ágil a arrepiar as nuvens. Há quarenta anos morria Hildebrando Siqueira, meu pai, a respeito de quem tenho conversado com vocês com alguma insistência. E com certeza já perceberam que vale a pena sempre dizer alguma coisa de um poeta. Hoje eu gostaria de conversar com ele, que ostentaria, agora, oitenta e dois anos e que não chegou a conhecer a última filha, a Maria Póstuma, como nós apelidamos a Lurdinha. E não curtiu sequer os três últimos dos quinze filhos. Tenho a impressão que lhe não deram tempo, primeiro porque morreu dessa maneira jovem e apressado e depois porque dava dez a doze aulas por dia para alimentar a tribo, - designação correta daquela falange de glutões.

Pois é Hildebrando, meu pai, você teria oitenta e dois anos e dos quinze filhos, dos que lhe sobram, agora, você encontra trinta e seis netos e dezoito bisnetos e pode crer que a turma melhorou a raça. Há muitos de olhos azuis, como os de vovô Isolino e alguns com cara de índio, quem sabe lembrança das raízes inconfessáveis daquela famosa árvore genealógica que se tentou compor heraldicamente. Mas, é uma turminha boa, alegre, com algumas e naturais confusões, dessas que você demora para entender e cujas soluções, finalmente, mamãe consegue encontrar e as finaliza com aquele sorriso, do qual você há de se lembrar, entre irônico e piedoso. Você precisa ver quando a gente consegue reunir todo mundo, na casa do João Carlos ou na minha, - vale a pena - o movimento fica entre o de uma creche e de um campo de futebol em dia de grande jogo. Poucos conseguem entender-se, mas correm, comem, - principalmente comem - jogam e a final pelos cantos há crianças de todo tipo dormindo, empoleiradas em cadeiras, camas improvisadas, pelos corredores.

Mamãe vai bem e depois daqueles três livros de poesia que escreveu e que editamos para a família, escreve as suas memórias, cujos originais compostos por ela mesma, à máquina, são revistos e repassados pelo Maneco. Anda com um pouco de dor na perna mas, continua indo à igreja e roda o dia inteiro, a trabalhar.

Cá para nós, mesmo depois de quarenta anos passados você faz falta. Já se imaginou conosco, todos os netos e bisnetos e você, com aquela alegria, com a qual nos ensinou, muitas vezes a entender a própria vida, a curtir, agora, a sua cadeira de balanço, aquela austríaca, com o último livro de Quintana? E por falar nisso, conservo a sua biblioteca, algo aumentada pelos que adquiri, livros bons, - todos lidos, veja bem, anotados a lápis, nas margens e até algumas vezes, com caneta esferográfica, dessas que têm tinta vermelha e que parecem macular a página. Bem sei que você não aprova que se machuque o livro, mesmo porque você sempre se considerou bibliomaníaco. Quase me esqueço de dizer-lhe que muitos dos seus netos têm a sua cara, essa boca de babados, que se esparrama preguiçosamente queixo abaixo.

Mas, sabe o que está bom mesmo e que você aprovaria, tenho certeza, na excelente companhia aqui de seus filhos mais velhos? A noite campineira. A cidade se encheu de barzinhos ótimos, com música e cantores dos bons e aquele papo comprido a gente poderia desfiar pelos aí da madrugada, cordialmente, sem susto, cumprindo aquele nosso roteiro, em busca dos caminhos da lua nas águas de algum chafariz. Lembra-se de nossos carnavais? Há ótimo sambão em alguns lugares de nossa terra, com a cor local, decerto fortemente protegida alguma mulata de olhos verdes. Lógico que nos iríamos às redações dos jornais cheirar a tinta preta e embriagadora, confirmar o vício que você me legou, por inteiro, incuravelmente.

Hildebrando, velho amigo, - hoje um amigo velho - é primavera e você continua a ver as cores do mundo pelos multiplicados olhos de sua gente, olhos verdes, azuis, pretos, ariscos, alegres, agora um pouco comovidos.

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