Durante cerca de 20 anos, Francisco Isolino de Siqueira tem suas crônicas publicadas semanalmente no jornal Correio Popular, de Campinas. Escrevendo sobre o quotidiano da cidade e das pessoas que povoam sua vida, o advogado, jornalista e professor analisa e acompanha as condições econômicas, político-sociais e afetivas que definem os relacionamentos de seu tempo. Sempre através de verdadeiro diálogo com seu "leitor e amigo".

Seja destacando as obras desenvolvidas pelas entidades assistenciais da cidade e chamando o leitor à participação eficiente, seja incentivando os jovens à leitura e à inserção na vida política de sua comunidade ou ainda, relatando com humor as histórias de seu primo, "aquele que sofre do fígado", Isolino de Siqueira desenvolve estilo próprio e marcante de registrar, em forma de crônicas, o mundo à sua volta e também aquele dentro de si.

As crônicas publicadas neste blog são amostras de seu estilo literário cativante, original e pessoal, que conquista o leitor, mantendo vivas as suas mensagens, poesia, beleza e valores atemporais.

Boa leitura. Ou melhor, bom diálogo com este corintiano "irmão de quotidiano".

"Se eu pudesse recomeçar eu procuraria fazer meus sonhos ainda mais grandiosos porque essa vida é infinitamente mais bela e esplêndida do que eu pensava, mesmo em sonho". - Francisco Isolino de Siqueira

(trecho extraído da crônica "Colóquio")

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A rua

Assim como as casas têm alma, as ruas parecem familiares e cômodas, buliçosas e inquietas, coloridas como rosto infantil ou sérias, encarquilhadas nas ladeiras, abraçadas às árvores, embriagadas de perfume. As ruas têm destino. Começam em algum lugar, terminam na próxima esquina. E, tem nome. Há as ruas largas, como anca de mulher fértil e as estreitas como peito de tísico. Respiram e conversam e de repente dormem. E é gostoso provocá-las no silêncio da madrugada. Despertam nas janelas assustadas e espreguiçam-se e bocejam nas manhãs de tanta gente. Há ruas-avenidas, ruas-becos, as que se promovem e as que envelhecem. Cansam de tanto progresso. Algumas me convidam. Gosto de passar por elas. Outras não me olham com bons olhos. Não as evito, mas ando depressa.

As ruas têm nome. Passo todos os dias pela que guarda, pequenina, o nome de meu pai, Hildebrando Siqueira. Ali no Cambuí. Liga a Antônio Costa Carvalho à Santos Dumont. Curtinha. Poucas casas, quase sempre vazias. Árvores e flores. Gente de vez em quando e carros, estes não a usam. Ela não dá acesso à coisa nenhuma. Começa e acaba em si mesma. Nunca vi rua tão íntima. E por isso mesmo me lembra, a todo o momento, a figura de meu pai. Como ele se sentiria, ali, diante da placa presa à parede ou ao poste, com o seu nome?

Hildebrando Siqueira foi literato, professor, cheio de filhos e livros, vivia naturalmente atribulado pelos encontrões da vida. O que é natural, em todos os tempos, a professores e pais de família numerosa. Muitos filhos e pouco dinheiro. É a fórmula primitiva de inflação. Não era lá muito afeito ao silêncio. Menos ainda à solidão. Os filhos não lhe permitiram nunca tal luxo. E ele mesmo era irrequieto, gostava dos amigos e da vida. Procurava, através das atividades que exercia, a comunicação quotidiana, com alunos na cátedra. Com leitores nos jornais onde trabalhou. Não sei não. Nesta rua era capaz de inventar alguma coisa para fazê-la mais dele.

O que Hildebrando inventaria para que a sua rua sorrisse com aquele jeitão boêmio? Com certeza esticaria bandeirinhas coloridas de árvore em árvore, como varais de alegria, as pequenas peças ao sol, de uma casa à outra. Mandaria abrir as janelas sempre, derrubar os muros altos.

E daria a cada um aquele telefone de brinquedo, para que todos conversassem, de porta a porta, enquanto carros e carinhos, crianças e bicicletas atrapalhariam todos os caminhos, como o tricô macio das mulheres que se sentariam à calcada, nas cadeiras preguiçosas, o próximo filho no ventre. Aliás, todas as mulheres deveriam ser, naquela rua, agora e sempre volumosas e bojudas. Deveriam parecer-se a um navio adernando. Imagem corajosa da fertilidade.

A rua Hildebrando Siqueira, ali no Cambuí, seria conhecida internacionalmente. Seriam comemoradas todas as festas de junho, ruidosamente. Haveria presépios coletivos nos natais e bois e burros de verdade pela rua cheia de serragem e bolas de vidro colorido nas árvores. E brinquedos. Muitos brinquedos, por todos os cantos e todos seriam capazes de perguntar sem susto, a todos os momentos, uns aos outros, como vai esse coração amigo. Essas tais de ponte safena seriam de coração a coração. Atrapalhariam até o trânsito da rua de meu Pai.

Tenho certeza de que mandaria ladrilhar com pedrinhas de brilhante, para que todos os seus amores pudessem passar. E estaria ele, lá, à porta, o sorriso largo naquela boca enorme, transparente como um sonho, com aquele arzão companheiro, sinal permanente de bom tempo, lá dentro, naquele coração de poeta e moleque.

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