Acho que não abrirei jamais esta sua carta. Vou deixá-la nesta gaveta - a das recordações - até não sei quando. Dentro dela há de perdurar o mesmo segredo que soubemos representar durante tanto tempo, à semelhança da senha que você devolve e que há de permanecer, também, ali dentro, a fim de que se não desvende mais o sagrado mistério que se compôs entre nós. Esta vai ser uma carta diferente - fechada. O envelope cerrado com perfeição, mesmo porque você o grampeou inúmeras vezes, quase com raiva. De que vale uma carta fechada? Por que não ler tudo aquilo que você quis dizer afinal? De verdade nunca deveríamos ter aberto as correspondências de nossos sentimentos - deviam ter ficado seladas, por medida de segurança. E, evitaríamos o desastre de tanto amor, aquele que desabava sobre nós dois, de repente, violento e consumidor. Mas, por outro lado, por que não abrir cartas, bilhetes, relatórios, resumos, textos que se nos oferecem com abraços, apelos, notícias, advertência, conclusão e apoio? Por que não trocar a correspondência que alimenta os afins - aqueles que se descobrem assustadoramente necessários, uns para com os outros?
Mas, não - esta carta não abrirei jamais. Não quero ficar sabendo em tempo algum o que você quis me dizer. Talvez esteja perdendo abraços, beijos gráficos, resmungos estilizados, revolta dactiloscópica. Não importa. Prefiro reescrever a carta que vou manter fechada. Reescrevê-la todos os dias, pela manhã, quem sabe à luz do sol poente, ou nas madrugadas que se operam mais coloridas nos bares insones. Reescrever às sextas-feiras em cores ou melancolicamente londrinas, estas do outono, mas reescrever sempre, com alegria ou com letras que se mergulham nas lágrimas que teimam em mudar a forma da paisagem, - mas reescrever. E, o que diria por você? Que palavras representariam o seu pensamento, não o que fere a distância que nos alimenta a própria saudade, mas este outro que revelasse, à semelhança das lagartas dos casulos, a perspectiva da primavera nas cores das asas novas. Vale a pena reescrever com tinta verde, quem sabe se projetem nas entrelinhas os brotos da vida nova - a nova vida que surge sempre depois da poda dos velhos galhos, das cinzas das próprias folhas secas.
De verdade tenho medo. Como sempre a mim me parece difícil a aceitação tranqüila da perda e ao mantê-la fechada, a carta, parece que selo o tempo, mantendo-o lá dentro, inalterável, incorruptível, infinito. Ou parado. Fica o retrato do quotidiano como está, sem qualquer alteração, imutável, - as feições, o riso, os gestos, tudo estático como se nada mais do que de repente pudessem recomeçar, gostosamente, com as mesmas cores, a mesma angústia, as dores primitivas da descoberta. Por que abri-la? Parece tão impossível entre nós a vulgaridade do fim - já pensou como seriam descabidas despedidas no céu, entre nuvens, asas brancas, harpas em desfile, lenços de luar nas mãos que se não afligem? Felicíssimo o instante em que não rompeu o envelope e a decisão de mantê-lo grampeado garante-me a coragem de reescrevê-la, à carta, todos os dias, quase em todos os momentos, como estranho refazimento de forças, a realimentação da alegria que se traduz em expectativa, esperança, - quase certeza de permanência. Quem sabe algum dia destes calendários que se desfazem, antes que a carta fechada se transforme em espólio, eu a queime. Então, de verdade, serão cinzas do passado.
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