Durante cerca de 20 anos, Francisco Isolino de Siqueira tem suas crônicas publicadas semanalmente no jornal Correio Popular, de Campinas. Escrevendo sobre o quotidiano da cidade e das pessoas que povoam sua vida, o advogado, jornalista e professor analisa e acompanha as condições econômicas, político-sociais e afetivas que definem os relacionamentos de seu tempo. Sempre através de verdadeiro diálogo com seu "leitor e amigo".

Seja destacando as obras desenvolvidas pelas entidades assistenciais da cidade e chamando o leitor à participação eficiente, seja incentivando os jovens à leitura e à inserção na vida política de sua comunidade ou ainda, relatando com humor as histórias de seu primo, "aquele que sofre do fígado", Isolino de Siqueira desenvolve estilo próprio e marcante de registrar, em forma de crônicas, o mundo à sua volta e também aquele dentro de si.

As crônicas publicadas neste blog são amostras de seu estilo literário cativante, original e pessoal, que conquista o leitor, mantendo vivas as suas mensagens, poesia, beleza e valores atemporais.

Boa leitura. Ou melhor, bom diálogo com este corintiano "irmão de quotidiano".

"Se eu pudesse recomeçar eu procuraria fazer meus sonhos ainda mais grandiosos porque essa vida é infinitamente mais bela e esplêndida do que eu pensava, mesmo em sonho". - Francisco Isolino de Siqueira

(trecho extraído da crônica "Colóquio")

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Defeito de fabricação

Mamãe que me desculpe. Mas apresento alguns e curiosos defeitos de fabricação. Sou sentimental, quase piegas. Me acostumo com as pessoas, os caminhos, a paisagem. Como chinelo velho. Gosto de uma camisa a exaustão e já há muitos anos não tenho o chamado terno-de-missa. Uso tudo ao mesmo tempo e quando descubro os sapatos envelheceram juntos, comodamente. Decerto vou ser um defunto fácil. É só virar as gavetas num balaio e pode até mandar junto com o que restar das minhas paixões. Levanto cedo e deito tarde. Detesto ficar de olho fechado. A vida é curta e há tanto o que ver. A madrugada exerce sobre minha alegria estranho fascínio. O seu perfume me embriaga. Quando estou alegre fico quieto. Quando estou triste viro uma matraca. O amor me dá arrepios de frio a trinta e seis graus à sombra e o entusiasmo pelo que faço parece febre terçã, me ataca em surtos intermitentes. Procuro os caminhos mais longos porque alimentam a expectativa e tropeço facilmente em cadeiras e degraus.
Notem que são alguns e curiosos defeitos de fabricação. E acrescento, para a necessária tranqüilidade da artista que me esculpiu, que me alegro com os próprios defeitos. Principalmente um deles - não sei colecionar coisa alguma. Desses objetos que tantos caçam com entusiasmo. Caixas de fósforo, xícaras sem pires. Cadeiras de espaldar alto. Cachimbos e dólares. Os livros, estes eu os guardo. Tenho por eles um carinho à parte e não entendo bem guardá-los como se isto fosse colecionar livros. Entretanto. Não gosto de reler. Mais parece preguiça mental. Livro lido é como bagaço. Guarda-se para aproveitá-lo como fermento, de vez em quando. Choro em casamento de filhos dos outros e não sei contar piada em velório, acho por demais respeitável a serenidade do morto.
Já procurei me consertar de alguns registros defeituosos, como, por exemplo, a facilidade que tenho para esquecer quem não gosta de mim. Ou a dificuldade que sinto em decorar poesias, nome de rua, número de telefone, nome de colunável, data de festa pública e signos do zodíaco. Arrumei alguns processos mnemônicos para não fazer feio em festa solene, diante do homem que chega de gravata borboleta, com cara de dono-da-casa. Mas troco as bolas facilmente e o prior é que não sinto vergonha.
Preciso sentar nos primeiros bancos da igreja e entreter-me o tempo todo lendo o livro de missa senão fico curtindo orelhas e narizes. Sou desatencioso e para estudar me obrigo a ler em voz alta, quando não ando de um lado apara o outro na sala dos livros, esta a qual chamo biblioteca. Preciso amarrar o corpo inteiro, prendê-lo decididamente naquilo que estou fazendo, porque senão minha cabeça rola por infindáveis sonhos, desaparece do próprio corpo, corajosa e escoteira. Não sei onde são guardadas as tampas de panela, as toalhas de banho, a pasta de dente. Quase sempre não me lembro do que comi no almoço. Nunca fiz café e prego torto o botão na camisa.
Entretanto, para compensar tenho alguns registros perfeitos. Perfeitíssimos. Adoro gente. Gosto de visita. Companhia para almoçar e de olhar nos olhos de todo o mundo. Entendo muito melhor as pessoas através do silêncio expressivo e úmido dos próprios olhos. Boiam líquidos quando alegres. Quase secam quando bravos. Escorregam nos cantos quando machucados. Compõem o mais perfeito universo de expectativas. Sou ainda capaz de chegar à casa do amigo e não pedir licença para entrar. Quem sabe sente à mesa sem convite e busque a comida na panela. Tenho coragem de afiançar a pena que sinto de quem não gosta de mim.



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