Quero sentir-me bem onde trabalho. Aqui passo quase metade do meu dia. Por isso faz falta a companhia de coisas simpáticas - móveis e gente. Cadeiras e mesas podem ser adquiridas com a qualidade reclamada. Gente não. No escritório há gente móvel e os que integram o imobilizado. A primeira classe é dos que passam e a segunda é a dos que convivem. O imobilizado - isto é, a gente permanente enfeita o quotidiano e isso é bom. O nosso atendimento se faz em sala especial e ali criamos verdadeira galeria de arte. São quadros de artistas diversos, originais, de tal sorte que enriquecem os momentos humanos que ali se praticam. Coloco de propósito um dos quadros de tal maneira que fique bem defronte à cadeira em que sento durante as entrevistas e reuniões. É trabalho sensível de Suely Pinotti. Um menino ajoelhado brinca com a bola de gude. As cores definem a criatura em branco, como devem ser pintadas as crianças. O interesse tranqüilo da pequena figura transporta-me repetidas vezes para outros cantos da vida, especialmente nos instantes em que, durante o trabalho, preciso fugir de mim mesmo. Ou da gente móvel, dos que transitam diante de minha angústia. Há outros quadros, dentre eles um Tanaka que movimenta cores com audácia. Mas prefiro o menino - debruço-me também com ele para a melhor jogada.
Aquela sala, a nossa vida, o lar, a rua, a sociedade são galerias de arte. É preciso encontrar o quadro que nos conduza seguramente ao sonho. E há sempre mais de um menino debruçado à escuta dos sons da terra. E se podemos adquirir mesas e cadeiras que enfeitam escritórios, não é nada difícil apreciar a arte das próprias criaturas. São galerias de arte os palcos e as peças - há as figuras tristes, criminosas e amoráveis. São também exposições da vida o cinema e o esporte, o clube recreativo e a igreja. Há santos e bandidos. Vencedores e vencidos. Como aproveitar todos os matizes? Os toques audazes do pincel ou o corte violento do cinzel - os homens bons e os menos bons. Os mais bonitos e os que podem ficar bonitos. Para aproveitar a galeria de arte que é a própria vida eleja o seu quadro predileto. Não se esqueça da moldura. Ela delimita o espaço infinito e garante a segurança do belo criado. Permite que você mesmo defina aquele instante que se compôs no tempo. É o único passaporte para Pasárgada.
Ou então crie. Pinte o seu quadro. O que você espera? Que a inspiração lhe garanta um Fra Angélico? Parecem-lhe pesados os pincéis e nem poderia ser diferente. É difícil fazer aquele azul ou esparramar o verde convincente. Por que você não ama pura e simplesmente se os pincéis lhe não respondem? Já pensou que esplêndida obra de arte está ali a sua disposição, em seus filhos, na mulher que o atende como a eminência parda de todos os destinos, nos seus amigos? Há cores ao infinito na aquarela da convivência. Emoldure-os, a estes momentos humanos. Você compõe a própria moldura. Então pode aproveitar gostosamente a sua galeria de arte, não a galeria que você cria, ousada e repetidamente. Daí sim você pode eleger melhormente o seu quadro - a criatura de sua escolha. E descobrimos com certeza que é urgente trabalhar minuto a minuto o esforço artístico. Que não há pincel mais exigente que o amor convencido e que é preciso refazer sem cansaço as linhas do próprio amor. Então você fica tão entusiasmado que acaba adquirindo a própria obra.
Quadro pintado por Gabriel Cengarle de Siqueira, neto do autor.
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